"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Transbordante de alegria


Transbordante de alegria

a saltadora agarra-se aos saltos às colegas derrotadas

por ter aterrado um centímetro além

num caminho que acaba

exatamente no mesmo sítio que o das outras

O golfista flete recua o braço e fecha o punho

num gesto expressivo de força e sucesso

e está radiante por ter dado menos pancadas

que qualquer dos oponentes

O artista emociona-se a receber o prémio

decidido por pertencer a família

por cultivar as relações

por galeria ou editora

como se inusitada a ovação

A um espírito filosófico

tudo isso parecerá disparatado

sentir se calhar a vida inteira realizada

por alcançar primeiro uma meta

que foi para tal ali colocada

e no mesmo sítio amanhã ali não estará

como nunca esteve rigorosamente nada

pelo qual valesse o esforço de chegar primeiro lá

um lá convencionado entre os entes

que por aqui e ali há

Mas fará esse espírito algo diferente

ou apenas manifesta presunção somente?

 

Uma gata do lado de lá de um vidro

que me vê ali ela aqui eu

há dias há semanas meses

sempre a fazer as mesmas coisas

e sempre a ter as mesmas reações

tenta cheirar-me através do vidro

e estica-se toda numa instabilidade impossível

intentando talvez por uma qualquer brecha invisível

alcançar o odor que o vidro não concede

Vem a outra disparada e empurra a primeira à sapatada

para como sempre me tentar tocar através do vidro

e também ela se estica até cair desamparada

sempre a intentar passar o obstáculo intransponível

Ambas me miam talvez a solicitar interação

maior que a que lhes permite o alcance da visão

embora os dias as semanas e os meses

não devessem lhes dar a esperança

de no meu comportamento haver qualquer mudança

 

Se fossem fenomenólogas acaso intentariam

alcançar o objeto que assim veriam?

Certamente com maior empenho se possível

pois julgariam que o alcançariam

e de facto alcançavam visto nada ser

senão as imagens que no vidro apareceriam

Poderiam mesmo teorizar o odor fenoménico

ou a textura surpreendente da imagem

alcançando assim conhecimento apodítico

de tudo quanto estava a acontecer

que hermeneuticamente só teria origem

no aparecer que possibilitava a linguagem

Assim é nesta época a sabedoria

visto a alternativa ser análise semântica

proibindo uma qualquer psicologia

que vislumbre qualquer força na origem

da mais insólita enunciação apofântica

 

Eu porém ouço o malogrado sábio escocês de outra era

e penso que as gatas como nós são arrastadas

por um instinto uma pulsão cega e constringente

a acreditar que há algo para lá do vidro

para lá do que se diz do que se entende do que se sente

Qualquer pensamento que não expresse a nossa radical incompletude

é um pensamento que erra que engana que se ilude

Qualquer sabedoria que erija um edifício de certeza

altaneiro sólido arrogante presunçoso

sem consciência de assentar em areias movediças

está condenado a ser engolido inteiro pelo lodo

não sendo aproveitáveis sequer as dobradiças

Também esta época devia viver a humildade

de se interrogar pela graça em vez da ciência

pelo desejo em vez da inteligência

pela treva em vez da claridade[1]

Talvez pudesse aí alcançar algum sentido ou verdade

 

Revezaram-se as correntes a vencer as trevas

lançando filosofia e metafísica para o passado

e cada qual orgulhoso se ufanava do triunfo

como o saltador o golfista o artista ovacionado

Mas estas gatas metafísicas tentam alcançar o outro lado

com meios inadequados para o fim visado

eternamente buscando encontrar o odor

do inalcançável pelo olfato

eternamente buscando o toque e o calor

do inalcançável pelo tato

Nada tentariam não fosse pela visão e escuta

pressentirem uma dimensão situada além da gruta

Assim o homem sempre algo mais pressente

mesmo se o não disse se não o escutou se o não viu

E tal como outrora o homem se satisfazia

por duramente alcançar os frutos do seu trabalho

e agora só encontra orgulho e mais valia

em mais longe lançar o dardo ou malho

quando ficar mais perto nada alteraria

assim o filósofo passado se realizava

se do mistério insondável

o menor indício vislumbrava

e agora fica contente com a opacidade

proclamando as conclusões da cegueira

como se fora derradeira e total verdade

como se as imagens palavras proposições que no vidro aparecem

fossem uma completa autónoma realidade

 

O fenomenólogo o hermeneuta o analítico

são no pensamento o que é o desportista no trabalho

gloriosa realização de absolutamente nada

celebrando o triunfo no mero espetáculo

performance desdobrada para uma tela projetada

Antes as ridículas metafísicas gatas

absurdamente arrastadas por suas pulsões inatas

nunca desistindo do inatingível

nunca lhes chegando apenas o visível

 

© Joaquim Lúcio, 1-2/3/21



[1] Boaventura, Itinerário da mente para Deus, VII, 6.

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