Transbordante
de alegria
a
saltadora agarra-se aos saltos às colegas derrotadas
por ter
aterrado um centímetro além
num
caminho que acaba
exatamente
no mesmo sítio que o das outras
O
golfista flete recua o braço e fecha o punho
num
gesto expressivo de força e sucesso
e está
radiante por ter dado menos pancadas
que
qualquer dos oponentes
O
artista emociona-se a receber o prémio
decidido
por pertencer a família
por
cultivar as relações
por
galeria ou editora
como se
inusitada a ovação
A um
espírito filosófico
tudo
isso parecerá disparatado
sentir
se calhar a vida inteira realizada
por alcançar
primeiro uma meta
que foi
para tal ali colocada
e no
mesmo sítio amanhã ali não estará
como
nunca esteve rigorosamente nada
pelo
qual valesse o esforço de chegar primeiro lá
um lá
convencionado entre os entes
que por
aqui e ali há
Mas fará
esse espírito algo diferente
ou
apenas manifesta presunção somente?
Uma gata
do lado de lá de um vidro
que me
vê ali ela aqui eu
há dias
há semanas meses
sempre a
fazer as mesmas coisas
e sempre
a ter as mesmas reações
tenta
cheirar-me através do vidro
e
estica-se toda numa instabilidade impossível
intentando
talvez por uma qualquer brecha invisível
alcançar
o odor que o vidro não concede
Vem a
outra disparada e empurra a primeira à sapatada
para
como sempre me tentar tocar através do vidro
e também
ela se estica até cair desamparada
sempre a
intentar passar o obstáculo intransponível
Ambas me
miam talvez a solicitar interação
maior
que a que lhes permite o alcance da visão
embora
os dias as semanas e os meses
não
devessem lhes dar a esperança
de no
meu comportamento haver qualquer mudança
Se
fossem fenomenólogas acaso intentariam
alcançar
o objeto que assim veriam?
Certamente
com maior empenho se possível
pois
julgariam que o alcançariam
e de
facto alcançavam visto nada ser
senão as
imagens que no vidro apareceriam
Poderiam
mesmo teorizar o odor fenoménico
ou a
textura surpreendente da imagem
alcançando
assim conhecimento apodítico
de tudo
quanto estava a acontecer
que
hermeneuticamente só teria origem
no
aparecer que possibilitava a linguagem
Assim é
nesta época a sabedoria
visto a
alternativa ser análise semântica
proibindo
uma qualquer psicologia
que
vislumbre qualquer força na origem
da mais
insólita enunciação apofântica
Eu porém
ouço o malogrado sábio escocês de outra era
e penso
que as gatas como nós são arrastadas
por um
instinto uma pulsão cega e constringente
a
acreditar que há algo para lá do vidro
para lá
do que se diz do que se entende do que se sente
Qualquer
pensamento que não expresse a nossa radical incompletude
é um
pensamento que erra que engana que se ilude
Qualquer
sabedoria que erija um edifício de certeza
altaneiro
sólido arrogante presunçoso
sem
consciência de assentar em areias movediças
está
condenado a ser engolido inteiro pelo lodo
não
sendo aproveitáveis sequer as dobradiças
Também
esta época devia viver a humildade
de se
interrogar pela graça em vez da ciência
pelo
desejo em vez da inteligência
pela
treva em vez da claridade[1]
Talvez
pudesse aí alcançar algum sentido ou verdade
Revezaram-se
as correntes a vencer as trevas
lançando
filosofia e metafísica para o passado
e cada
qual orgulhoso se ufanava do triunfo
como o
saltador o golfista o artista ovacionado
Mas
estas gatas metafísicas tentam alcançar o outro lado
com
meios inadequados para o fim visado
eternamente
buscando encontrar o odor
do
inalcançável pelo olfato
eternamente
buscando o toque e o calor
do
inalcançável pelo tato
Nada
tentariam não fosse pela visão e escuta
pressentirem
uma dimensão situada além da gruta
Assim o
homem sempre algo mais pressente
mesmo se
o não disse se não o escutou se o não viu
E tal
como outrora o homem se satisfazia
por
duramente alcançar os frutos do seu trabalho
e agora
só encontra orgulho e mais valia
em mais
longe lançar o dardo ou malho
quando
ficar mais perto nada alteraria
assim o
filósofo passado se realizava
se do
mistério insondável
o menor
indício vislumbrava
e agora
fica contente com a opacidade
proclamando
as conclusões da cegueira
como se
fora derradeira e total verdade
como se
as imagens palavras proposições que no vidro aparecem
fossem uma
completa autónoma realidade
O
fenomenólogo o hermeneuta o analítico
são no
pensamento o que é o desportista no trabalho
gloriosa
realização de absolutamente nada
celebrando
o triunfo no mero espetáculo
performance
desdobrada para uma tela projetada
Antes as
ridículas metafísicas gatas
absurdamente
arrastadas por suas pulsões inatas
nunca
desistindo do inatingível
nunca
lhes chegando apenas o visível
© Joaquim Lúcio, 1-2/3/21
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