"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Sorvo a nata espessa do nevoeiro esbranquiçado

 

Sorvo a nata espessa do nevoeiro esbranquiçado

pela luz irreal de um amanhecer sombrio

e desejo libertação enfim de estar aqui deste lado

o lado que não se aquece, não se consola, frio

apartado de todo o calor, todo o astro, toda a chama

distância intransponível, infinitamente divisível

por onde a minha voz muda inutilmente clama

intentando alcançar algo que, embora visível

manter-se-á em si para sempre inatingível

 

E alcançar o quê e para quê?

Se o alcançasse, o que é que alcançaria?

Alcanço os óculos literais para ver tv

e apenas vejo outra imagem que não a que antes via

sem sequer os óculos apreender

por muito que me iluda por os usar e, por eles, melhor ver

A imagem ganhou precisão, contraste, pormenores

mas a coisa que vejo está tão lá quanto antes

e a imagem tão cá como sempre

e nunca existe a menor possibilidade

de alguma vez ser a relação diferente

alcançando o desejado integralmente

Se o alcançasse, o que é que alcançaria?

Nada, pois o desejado já não o seria

e tal todo o seu ser alteraria

 

Um inusitado raio aquece meu corpo gelado

mas eu continuo igualmente apartado

tanto que do meu próprio corpo estou distanciado

Consolem-se fenomenólogos suspendendo o juízo

e afirmando como apodíticos os dados da consciência

Eu sei que não atinjo o que diviso

e que nem fica por aí minha impotência

Radicalmente, sinto a minha incompletude

no próprio advir espontâneo do desejo

que nunca sei porquê surgiu

nem sequer o ato que o cumpriu

Mesmo que uma ponte mágica se criasse

entre mim e o tão desejado objetivo

continuaria infinitamente apartado

daquilo que sou e porque é que o vivo

 

A jovem que julguei bela e desejável

e procurei obsessivamente possuir

procurava fornicá-la para quê?

Depois de a fecundar, fecundei em mim o quê?

Preenchi-me mais, dei sentido à existência?

Ficou em mim algo que me alterou o ser?

Ou fiz o que fiz como coisa a cumprir uma exigência?

Senti-me mais realizado como homem?

Mas o que é isso que faça sentido para a minha consciência?

O que é isso para mim, ser considerado garanhão

obter de outros absurda consideração

garantir, pela jovem, a minha procriação

ou deleitar-me por, sei eu lá porquê, a julgar bela

quando teria igual prazer com uma dita feia?

Porquê escolhê-la a ela

se não faço ideia do que seja o belo e porque desejá-lo?

Porque com aquela o meu pénis fica falo

quando outra nem suscita fantasia?

Porque motivo a outra não me entesaria?

E mesmo com uma potência universal

que teria a ver comigo, com a minha decisão

tal incontrolável fálico manancial?

 

Tecla o advir do destino a espontaneidade animal

sem desígnio, sem finalidade, sem bem, sem mal

Toda a pretensão axiológica é risível

a responsabilidade existencial ininteligível

fazendo erguer o axioma da liberdade

sobre a imensidão da nossa ignorância

como se não se pudesse questionar causalidade

na origem de tal infundada arrogância

 

Nada se concebendo como podendo porvir do nada

como é possível ser eu uma exceção?

Confunde-se o ser com falta de cognição

ilude-se o sujeito como suposta transcendência

quando, de cá e de lá, só não existe ilusão

no reconhecimento de incompletude e impotência

 

A jovem depois de penetrada

ficou tal qual por mim intocada

e eu agi assim não sei porquê

cumprindo decretos de teor ignoto

e proveniência ainda mais desconhecida

Decido x porque me apetece

mas não faço ideia porque o apetite acontece

algo faz com que surja não sei ao certo para quê

algo em mim a trama da ação tece

sendo eu apenas o que o fenómeno vê

mero espetador de atos motivados

por efeitos por mim nunca causados

mas que em mim espontaneamente brotam

e, na sua desarticulada sucessão

infundada em qualquer minha razão

nunca acalmam, nunca cessam, nunca se esgotam

Infinita distância entre mim e mim

que só com a morte finalmente terá fim


 © Joaquim Lúcio, 21/7/21

 

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