Sorvo a
nata espessa do nevoeiro esbranquiçado
pela luz
irreal de um amanhecer sombrio
e desejo
libertação enfim de estar aqui deste lado
o lado
que não se aquece, não se consola, frio
apartado
de todo o calor, todo o astro, toda a chama
distância
intransponível, infinitamente divisível
por onde
a minha voz muda inutilmente clama
intentando
alcançar algo que, embora visível
manter-se-á
em si para sempre
E
alcançar o quê e para quê?
Se o
alcançasse, o que é que alcançaria?
Alcanço
os óculos literais para ver tv
e apenas
vejo outra imagem que não a que antes via
sem
sequer os óculos apreender
por
muito que me iluda por os usar e, por eles, melhor ver
A imagem
ganhou precisão, contraste, pormenores
mas a
coisa que vejo está tão lá quanto antes
e a
imagem tão cá como sempre
e nunca
existe a menor possibilidade
de
alguma vez ser a relação diferente
alcançando
o desejado integralmente
Se o
alcançasse, o que é que alcançaria?
Nada,
pois o desejado já não o seria
e tal
todo o seu ser alteraria
Um
inusitado raio aquece meu corpo gelado
mas eu
continuo igualmente apartado
tanto
que do meu próprio corpo estou distanciado
Consolem-se
fenomenólogos suspendendo o juízo
e
afirmando como apodíticos os dados da consciência
Eu sei
que não atinjo o que diviso
e que
nem fica por aí minha impotência
Radicalmente,
sinto a minha incompletude
no próprio
advir espontâneo do desejo
que
nunca sei porquê surgiu
nem
sequer o ato que o cumpriu
Mesmo
que uma ponte mágica se criasse
entre
mim e o tão desejado objetivo
continuaria
infinitamente apartado
daquilo
que sou e porque é que o vivo
A jovem
que julguei bela e desejável
e
procurei obsessivamente possuir
procurava
fornicá-la para quê?
Depois
de a fecundar, fecundei em mim o quê?
Preenchi-me
mais, dei sentido à existência?
Ficou em
mim algo que me alterou o ser?
Ou fiz o
que fiz como coisa a cumprir uma exigência?
Senti-me
mais realizado como homem?
Mas o
que é isso que faça sentido para a minha consciência?
O que é
isso para mim, ser considerado garanhão
obter de
outros absurda consideração
garantir,
pela jovem, a minha procriação
ou
deleitar-me por, sei eu lá porquê, a julgar bela
quando
teria igual prazer com uma dita feia?
Porquê
escolhê-la a ela
se não
faço ideia do que seja o belo e porque desejá-lo?
Porque
com aquela o meu pénis fica falo
quando
outra nem suscita fantasia?
Porque
motivo a outra não me entesaria?
E mesmo
com uma potência universal
que
teria a ver comigo, com a minha decisão
tal
incontrolável fálico manancial?
Tecla o
advir do destino a espontaneidade animal
sem
desígnio, sem finalidade, sem bem, sem mal
Toda a
pretensão axiológica é risível
a
responsabilidade existencial ininteligível
fazendo
erguer o axioma da liberdade
sobre a
imensidão da nossa ignorância
como se
não se pudesse questionar causalidade
na
origem de tal infundada arrogância
Nada se
concebendo como podendo porvir do nada
como é
possível ser eu uma exceção?
Confunde-se
o ser com falta de cognição
ilude-se
o sujeito como suposta transcendência
quando,
de cá e de lá, só não existe ilusão
no
reconhecimento de incompletude e impotência
A jovem
depois de penetrada
ficou
tal qual por mim intocada
e eu agi
assim não sei porquê
cumprindo
decretos de teor ignoto
e
proveniência ainda mais desconhecida
Decido x
porque me apetece
mas não
faço ideia porque o apetite acontece
algo faz
com que surja não sei ao certo para quê
algo em
mim a trama da ação tece
sendo eu
apenas o que o fenómeno vê
mero
espetador de atos motivados
por
efeitos por mim nunca causados
mas que
em mim espontaneamente brotam
e, na
sua desarticulada sucessão
infundada
em qualquer minha razão
nunca
acalmam, nunca cessam, nunca se esgotam
Infinita
distância entre mim e mim
que só
com a morte finalmente terá fim
© Joaquim Lúcio, 21/7/21
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