"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Como um poema recitado a meia luz

Como um poema recitado a meia luz,

adivinho os teus contornos no crepúsculo do meu quarto

e absorvo-te pela pele lenta, calmamente,

e desejo impregnar-me de ti cada vez mais eternamente...

 

Gravado ficará na memória este momento,

esta luz, esses contornos, esta calma, esse contacto,

este odor de fêmea fértil e recetiva ao afago,

essa penugem que percorre fofa carne, sedosa pele.

 

Poema sussurrado no teu corpo que adormece

ou já adormecido na penumbra que escurece

e que gradualmente nos dissolve e entorpece

até ao despertar da luz penetrante que amanhece,

 

teus versos, efémera magia fluída e respirada,

pairam na consciência um instante e são esquecidos

numa mente totalmente absorvida por e concentrada

em se entregar à fruição dos instantes mais vividos.

 

De pé, parado, numa pausa eterna de um momento,

à entrada do quarto devassado, segredado, reservado

para os mistérios, as violências, as ternuras, para o tempo,

presença plena inversa da mera duração, mero passado,

                            

inspiro o calor abafado que acumulas e exalas

numa dormência que me envolve o estar desperto,

enteléquia insuperável ou futuro que no ventre embalas,

anunciados, profetizados filhos de um horizonte aberto.

 

Habitas já essa coisa a que posso chamar alma,

pela qual te nomeio, te falo, te olho, te desejo,

ou te habito eu na tua alegria, no teu ódio, tua calma

quando adormeces na quente humidade terna de um beijo.

 

Poderemos acabar este enleio já pela manhã

e, ressentidos rancorosos, nem já nos nomearmos,

e nem olharmos o outro, se nos encontrarmos amanhã

ou se, inadvertidos, um pelo outro, tão-só passarmos,

 

poderemos deixar as promessas de futuro

entre tantos olvidados sonhos abandonados,

deitar fora este anseio incontrolável, puro

de frutificar em excesso enlaces enamorados,

 

poderemos trair entrega, fusão, significado,

e até preterir amor pela obscenidade

em que corpos e almas se vendem no mercado

onde se busca infrutiferamente saciedade,

 

poderemos ocultarmo-nos de nós mesmos,

negando a nossa própria autenticidade,

 

que restará, para sempre, dentro de mim guardada,

a sagrada relíquia deste instante de verdade.

 

Teus contornos se apagam na penumbra

e já só sigo lenta e espaçada respiração,

pela qual sei que, entre sonhos, a serenidade

te visita corolário orgástico da consumação.

 

É a hora de vogares na onírica corrente

ou na dormência sem sonhos do prazer,

hora de limpares a alma e gozares-te ausente

na fetal presença indistinta em que se gesta ser.

 

Para isso, há uma eternidade imensa de uma hora,

te aninhaste no meu ombro, enlaçando a minha carne,

exausta da penetração violenta ou repousada

em que te percorri, de lés a lés, por toda a tarde.

 

Também já adormeci a cabeça nos teus seios

até esquecer quem fui, quem sou ou o que ensejo,

fundindo a mente na fofura branca do teu peito

enquanto mantinha dentro de ti o meu desejo.

 

Momentos longos em que quereria morrer para sempre,

não regressar desse sono pousado no teu corpo,

babar-me como uma criança que se saciou e se sacia

no conforto de tal humano leito de carne tão macia.

 

Na escuridão, fecho os olhos para rever as sensações

e uma tépida enchente de amor e carinho me invade

até tornar indiferentes todas as procuradas emoções

pelos fragmentados desejos aqui fundidos unidade.

 

Nada mais que procurar pelo universo infindo,

futilidade da devassa humana pelo desconhecido,

sociedade, trabalho, convivência e luta,

será que alguma vez tiveram algum sentido?

 

Ou apenas nos procurávamos distrair

de quanto, passo a passo, nos estávamos a trair

desesperadamente buscando preencher nosso vazio

com estrépito, agitação ou pusilânime desvio?

 

Como um poema recitado a meia luz,

mesmo no escuro e de olhos bem fechados,

inspiro os tecidos suados da tua pele que reluz

irradiando os meus tecidos pelos teus impregnados.

  

No poema, letra a letra, gota a gota, corre o sangue

de todo esse sofrimento e grosseiro gozo sem sentido,

até ser por ti purificado, regenerado seiva

em que todo o já passado é redimido.

 

Relaxada, respiras o meu quarto, o meu leito, minha alma,

como se não precisasses na vida de mais nada

e eu encontro-me ápice e final neste fim de tarde calma

no qual saúdo a escuridão como se fora a alvorada.

 

A noite cai e eu deito-me de novo a teu lado,

o teu corpo adormecido e cego busca o meu

como se só para ele continuasse inda acordado.

 

O calor invade-me, aqueço-me, torpor, sou teu...


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, vol. II, abertura, pp. 113-116

1 comentário:

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