"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Terra e água

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     Alguns dos jovens que o procuravam, ainda que excluídos das seitas e grupos reconhecidos pela gente, sentiram necessidade de alguma diversão. Começava a estar calor, nada de especialmente sufocante, mas o suficiente para poder usufruir das praias. Convenceram os mais recalcitrantes a fazerem uma saída e acabaram por ir tentar fazer o mesmo com o renascido. Este lembrava-se do absurdo das multidões a deixarem as suas cidades, vilas e aldeias para se dirigirem para a língua de areia junto à costa, onde se concentravam, por vezes, num cenário dantesco, a grelhar ao sol, sem espaço quase para se deitarem, para chegar à água ou se movimentarem. Mesmo no interior, recordava-se de cenários análogos e, em ambos os casos, de toda a tensão que percorria ida e vinda e a luta por lugar para o transporte, na praia ou em qualquer das instalações de apoio, balneários, cafés, etc. Não estava nada interessado em acorrer para o meio de tal horda e rejeitou a oferta. Porém, os jovens não desistiram e acabaram por o convencer visto irem para uma praia com acessos restringidos a transportes públicos de que, aliás, se lembrava. Mas, na verdade, outra recordação o prendeu. Nas idas à praia, havia um momento de libertação que não podia esquecer quando nadava para longe da massa e ficava à distância a voltear sem destino dentro de água, como se nada houvesse a visar senão o gozo de ali estar com a frescura líquida e os seus movimentos fluídos. Na verdade, foi a água e não a insistência dos jovens que o atraiu para a estância balnear. Pela água, aprofundou o seu pecado…

     Após chegar, foi observando as entradas na água das gentes que por ali estavam e, ao ser interpelado pelos jovens que o acompanhavam, acabou por declarar:

 

Os corpos bípedes vagueiam desesperados pela terra

já sem a perceber, sem a sentir, sem a escutar

Os corpos amputados e esquecidos que a cidade encerra

já nem sentem no chão que pisam o seu lar

 

Por isso, as almas penadas que os habitam

e lhes dão a ilusão de vida e destino e ação

anseiam no lago ou mar que aqui ali visitam

um símbolo do rumor de uma recordação

 

Podem vir rancorosos uns com os outros

cultivar os ódios que as relações permitem

procurar provocar obscenidades em encontros

 

que ao penetrar a água por instantes se redimem

a frescura lhes dissolve instantânea o egoísmo

e a fluidez os abençoa com o sacramento do batismo

 

*

 

Um tal refrigério de tal forma inexplicável

tem de ter uma razão, ao menos um motivo

para trazer ao mais mesquinho terrestre o inefável

para fazê-lo comungar, inconsciente, com o vivo

 

O homem perdeu-se da própria terra sobre a qual depõe os pés

e só o lembra sob a forma de uma infinita eterna mágoa

que procura aliviar desesperado com as fés

mas de que só alcança a redenção dentro de água

 

E a água ao trazer momentâneo esquecimento

permite vaga reminiscência do mais fundo que olvidou

não como imagem, mas como gemido, como lamento

 

­viúva desfeita em pranto, pai de filho que não voltou

a alma do homem é do corpo uma assombração

feita de água, lembrança vaga, dor sem reparação

 

*

 

Porque anseia o senhor da terra pela água?

para saciar a sede, como fonte de prazer e vida?

mas porque não lhe basta abrir uma torneira

ou bebê-la por garrafa em qualquer saída?

 

O senhor da terra domina-a, tortura-a, consome-a

mas não lhe conhece o sentido, a origem, o segredo

o único que o podia proteger de frustração, loucura

por sua liberdade desembocar em escravatura e degredo

 

Projetando uma aspiração incondicionada e desmedida

libertada de sujeição à natureza, libertada do trabalho

acaba sempre numa mesquinhez triste e ressentida

 

carcaça esvaziada sem valor sequer para o talho

– de tal depreciação tenta refugiar-se em rio ou mar

imensidão sem limites, sem distinção, sem par

 

*

 

Poderá se compensar numa piscina ou até numa banheira

mas sua longa amnésica falta é a do enleio infinito

não lhe chega compra e venda, amizade companheira

não lhe chega tirania, não lhe chega amor, não lhe chega mito

 

No fervilhar do dia a dia, na ambição, na cobiça

na obsessão lúdica, na investigação, no espetáculo

quanto mais o estímulo o ameaça, seduz ou atiça

mais o homem o sente, veladamente, um obstáculo

 

A alma anseia, secretamente, de lago, rio ou mar

desaguar sem limites no ilimitado oceano

onde se poderá perder enfim para se realizar

 

realizar o seu sonho desmesurado e insano

que a apartou para sempre da pertença à terra

numa destruidora e interminável guerra

 

*

  

Perder-se nas correntes, nas ondas, tempestades

perder-se nos abismos, entre costas, longe delas

perder-se na pressão das maiores profundidades

perder-se de rotas e interesses de humanas caravelas

 

Diluir a alma na imensidão da água eternamente

até se esquecer de ter sido louca e humana

dispersar-se em vagas em gotas em partículas

ao sabor dos ditames da natureza soberana

 

e embrenhar-se nas areias, nas rochas e nas lamas

e ascender aos céus, pelas trombas e pelas nuvens

e regressar, por fim, à olvidada eterna morada

 

na borrasca, no nevoeiro, na chuvinha demorada

aspergindo o solo a erva a árvore o galho

com a bênção à terra agradecida do orvalho 

 

     Reparou, então, que alguns dos jovens tomavam notas do que dizia e o facto desagradou‑lhe. Por isso, calou-se e entrou na água, afastando-se para longe. A sua declaração, porém, ficou registada e passou a ser conhecida como os “5 sonetos da dissolução”. Se acaso o renascido teve sequer consciência de ter proferido sonetos, é algo que nunca se pôde apurar.


© Joaquim Lúcio, ressurreição, pp. 212-214

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