Alguns
dos jovens que o procuravam, ainda que excluídos das seitas e grupos
reconhecidos pela gente, sentiram necessidade de alguma diversão. Começava a
estar calor, nada de especialmente sufocante, mas o suficiente para poder
usufruir das praias. Convenceram os mais recalcitrantes a fazerem uma saída e
acabaram por ir tentar fazer o mesmo com o renascido. Este lembrava-se do
absurdo das multidões a deixarem as suas cidades, vilas e aldeias para se
dirigirem para a língua de areia junto à costa, onde se concentravam, por
vezes, num cenário dantesco, a grelhar ao sol, sem espaço quase para se
deitarem, para chegar à água ou se movimentarem. Mesmo no interior,
recordava-se de cenários análogos e, em ambos os casos, de toda a tensão que
percorria ida e vinda e a luta por lugar para o transporte, na praia ou em
qualquer das instalações de apoio, balneários, cafés, etc. Não estava nada
interessado em acorrer para o meio de tal horda e rejeitou a oferta. Porém, os
jovens não desistiram e acabaram por o convencer visto irem para uma praia com
acessos restringidos a transportes públicos de que, aliás, se lembrava. Mas, na
verdade, outra recordação o prendeu. Nas idas à praia, havia um momento de
libertação que não podia esquecer quando nadava para longe da massa e ficava à
distância a voltear sem destino dentro de água, como se nada houvesse a visar
senão o gozo de ali estar com a frescura líquida e os seus movimentos fluídos.
Na verdade, foi a água e não a insistência dos jovens que o atraiu para a
estância balnear. Pela água, aprofundou o seu pecado…
Após
chegar, foi observando as entradas na água das gentes que por ali estavam e, ao
ser interpelado pelos jovens que o acompanhavam, acabou por declarar:
Os corpos bípedes vagueiam
desesperados pela terra
já sem a perceber, sem a sentir,
sem a escutar
Os corpos amputados e esquecidos
que a cidade encerra
já nem sentem no chão que pisam o
seu lar
Por isso, as almas penadas que os
habitam
e lhes dão a ilusão de vida e
destino e ação
anseiam no lago ou mar que aqui
ali visitam
um símbolo do rumor de uma
recordação
Podem vir rancorosos uns com os
outros
cultivar os ódios que as relações
permitem
procurar provocar obscenidades em
encontros
que ao penetrar a água por
instantes se redimem
a frescura lhes dissolve instantânea
o egoísmo
e a fluidez os abençoa com o
sacramento do batismo
*
Um tal refrigério de tal forma
inexplicável
tem de ter uma razão, ao menos um
motivo
para trazer ao mais mesquinho
terrestre o inefável
para fazê-lo comungar,
inconsciente, com o vivo
O homem perdeu-se da própria
terra sobre a qual depõe os pés
e só o lembra sob a forma de uma
infinita eterna mágoa
que procura aliviar desesperado
com as fés
mas de que só alcança a redenção
dentro de água
E a água ao trazer momentâneo
esquecimento
permite vaga reminiscência do
mais fundo que olvidou
não como imagem, mas como gemido,
como lamento
viúva desfeita em pranto, pai de
filho que não voltou
– a alma do homem é do corpo uma assombração
feita de água, lembrança vaga,
dor sem reparação
*
Porque anseia o senhor da terra pela
água?
para saciar a sede, como fonte de
prazer e vida?
mas porque não lhe basta abrir uma
torneira
ou bebê-la por garrafa em
qualquer saída?
O senhor da terra domina-a,
tortura-a, consome-a
mas não lhe conhece o sentido, a
origem, o segredo
o único que o podia proteger de
frustração, loucura
por sua liberdade desembocar em escravatura
e degredo
Projetando uma aspiração
incondicionada e desmedida
libertada de sujeição à natureza,
libertada do trabalho
acaba sempre numa mesquinhez
triste e ressentida
carcaça esvaziada sem valor
sequer para o talho
– de tal depreciação tenta
refugiar-se em rio ou mar
imensidão sem limites, sem
distinção, sem par
*
Poderá se compensar numa piscina
ou até numa banheira
mas sua longa amnésica falta é a
do enleio infinito
não lhe chega compra e venda,
amizade companheira
não lhe chega tirania, não lhe
chega amor, não lhe chega mito
No fervilhar do dia a dia, na
ambição, na cobiça
na obsessão lúdica, na
investigação, no espetáculo
quanto mais o estímulo o ameaça,
seduz ou atiça
mais o homem o sente,
veladamente, um obstáculo
A alma anseia, secretamente, de
lago, rio ou mar
desaguar sem limites no ilimitado
oceano
onde se poderá perder enfim para
se realizar
realizar o seu sonho desmesurado
e insano
que a apartou para sempre da
pertença à terra
numa destruidora e interminável
guerra
*
Perder-se nas correntes, nas
ondas, tempestades
perder-se nos abismos, entre
costas, longe delas
perder-se na pressão das maiores
profundidades
perder-se de rotas e interesses
de humanas caravelas
Diluir a alma na imensidão da
água eternamente
até se esquecer de ter sido louca
e humana
dispersar-se em vagas em gotas em
partículas
ao sabor dos ditames da natureza
soberana
e embrenhar-se nas areias, nas
rochas e nas lamas
e ascender aos céus, pelas
trombas e pelas nuvens
e regressar, por fim, à olvidada
eterna morada
na borrasca, no nevoeiro, na
chuvinha demorada
aspergindo o solo a erva a árvore
o galho
com a bênção à terra agradecida
do orvalho
Reparou,
então, que alguns dos jovens tomavam notas do que dizia e o facto desagradou‑lhe.
Por isso, calou-se e entrou na água, afastando-se para longe. A sua declaração,
porém, ficou registada e passou a ser conhecida como os “5 sonetos da
dissolução”. Se acaso o renascido teve sequer consciência de ter proferido
sonetos, é algo que nunca se pôde apurar.
© Joaquim Lúcio, ressurreição, pp. 212-214
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