"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

domingo, 11 de setembro de 2022

Prefácio

      O poeta morreu em mim aos vinte e tal anos. Melhor, o poeta foi morrendo em mim aos vinte e tal anos. Andou a sucumbir durante anos e faleceu, aparentemente de vez, quanto atingi os 30. E, depois, o que vivi? Dir-se-ia que várias vidas, vários avatares. Dir-se-ia mal. O que vivi como professor, como marido, como pai, como jogador, como amante, como funcionário foi sempre tão-só e apenas a morte do poeta. Porém, já enquanto o poeta moribundo soçobrava, comecei a perceber que a morte do poeta não era uma mera contingente configuração da minha sobrevivência, uma mera ocorrência do percurso individual, para mim muito relevante, mas com pouco ou nenhum significado global, uma mera circunstância infeliz, mas apenas factual.

A morte do poeta é a configuração mesma desta época, uma época que reduziu toda a compreensão, toda a relação, todo o dizer à operatividade, ao cálculo, ao esqueleto, à armação, ao organigrama funcional. A unilateralidade do pensamento técnico, a unidimensionalidade da humanidade contemporânea, a imediatez da linguagem dos media, a transcendência esmagadora do mercado, o dogmatismo autocrático da tecnociência, assim como as suas imitações obscurantistas, desde as mais sérias e ideológicas pseudociências sociais e humanas à tagarelice ignorante e nauseante das ditas ciências ocultas, tudo realizava o velho sonho metafísico da superação das aparências do poeta. Mas a metafísica esquecera-se que tinha a mesma origem da poesia, que o puro dizer que emanava dos filósofos arcaicos quase perdidos era poético e que o poeta apenas residia junto da fonte de onde o seu próprio dizer provinha. Por isso, para realizar mais completamente a superação do poeta, havia que esquecer o próprio esquecimento, esquecer as raízes metafísicas da economia, técnica e ciência, fazer uso do olhar enviesado do nosso tempo capaz de não reconhecer as mais óbvias evidências e fingir a superação da própria metafísica. O mais absoluto domínio da metafísica exigiu a má-fé de não se reconhecer o seu caráter metafísico mais patente. A autocracia metafísica está presente nas teorias indiscutíveis da ciência que nem admitem ser chamadas teorias, nas leis invisíveis do mercado, no mundo virtual planetário e em todo o predomínio, não apenas político, mas intelectual, da tecnocracia. Como toda a autocracia, deixa de querer questionações, problematizações, até argumentações pelo menos complexas. Há que reduzir tudo à imediatez da fórmula, do provado, da palavra de ordem, do slogan, do meme. E, por todo o lado, como um espetro constante, a persistente assombração da morte do poeta.

Não que esta época não tenha produzido sucedâneos de poetas, produtos como outros que se dizem exatamente o contrário do que são. Sempre que hoje se ouça falar em espírito crítico, em autonomia, em criatividade, até em filosofia, pode-se estar certo de se estar a procurar garantir exatamente o contrário, conformismo, dogmatismo, imitação e cálculo operativo. São produtos técnicos que visam fornecer a ilusão que se está a realizar, porventura com a maior perfeição de sempre, aquilo mesmo que se assassinou.[1] O mesmo acontece com os poetas e os artistas em geral. Sendo a poesia o dizer original, como é possível que se afirme poeta quem não diz rigorosamente nada, quem reduza a sua produção a uma estéril vacuidade eufónica, computando palavras ao calhas? Isso só é possível num ambiente que reduziu a arte plástica à especulação arbitrária do mercado e deixa a música entre a miséria andrajosa ou os sons grosseiros e os ritmos dementes da repetição obsessiva dos enlatados ditos populares. O caos da técnica reservou um recanto para essas aberrações que permanecem de outros tempos, um pouco como as antigas tendas dos horrores, mas sem sequer terem capacidade de construir um marginal discurso alternativo. Para ser um discurso alternativo, era preciso que se dissesse alguma coisa de alguma forma. Ora, esse é o objetivo desses sucedâneos, objetivo cuidadosamente cultivado por editoras, por galerias, por museus e pelo mercado, apresentar um produto que possa satisfazer o caos hebefrénico de alguns seres perturbados, enquanto mostra para todos os outros o ridículo e o absurdo do discurso poético, do discurso pretensioso de e sobre a arte, um “blábláblá” ou um “patoá” sem nexo que mais evidenciam a omnipotência exclusiva da operatividade técnica. Os artistas quiseram no passado a autonomia em relação à metafísica, à ética, à política, à ciência, à técnica, até mesmo à estética, para desembocarem na mais completa irrelevância, um entretenimento de horrores que não tem qualquer possibilidade de ter qualquer poder na distopia técnica que se criou e se está a criar. É por isso que tanto o mercado zela para que a arte e, em particular, a poesia não digam nada, muito embora possam sempre parecer estar a dizer tudo, num sincretismo holístico reduzido à completa liberdade do vazio de todo e qualquer sentido. É bom para o mundo técnico do mercado que não haja qualquer verdadeiro discurso alternativo. Quem sabe até onde um discurso alternativo poderia contestar o seu domínio? Quem sabe o que um dizer verdadeiramente original poderia relembrar?

Claro que, ao fim de dois séculos de declarações de morte disto e daquilo, já ninguém tem a menor reação a mais uma. Morte da metafísica, da filosofia, do próprio homem, da história, do ser e tantas outras são tantas outras declarações tonitruantes que tiveram, na sua altura, algum impacto, para se acabarem por revelar aquilo que sempre foram, vacuidades sem significado que não o da vaidade dos proclamadores. É possível que alguma dessas realidades venha a morrer ou a ser reconfigurada de tal forma que o produto posterior só tenha o nome em comum com a realidade anterior. Mas não é claro que isso já tenha ocorrido em qualquer dessas áreas ou conceitos. A metafísica goza um certo renascimento até na filosofia analítica, o homem que sofre a reconfiguração técnica ainda subsiste com dificuldade, embora com cada vez menor noção de si próprio, a história surpreende sempre os seus cangalheiros e o ser apenas acabou segundo a história que dele alguém contou, ele próprio apenas mais um momento da história do ser. Em que é diversa a morte do poeta? Sinceramente, espero que não seja diversa, mas é. A atual omnipotência da mentalidade técnica pode ser acomodada em versões técnicas da filosofia, da metafísica, do homem, da história e do ser, muito embora a técnica moderna não seja mais que a realização plena de um tipo de metafísica. Mas não há possibilidade de um acomodamento técnico moderno do poeta. Um acomodamento técnico do poeta seria um não poeta. Pior ainda, qualquer renascimento do poeta parece impossível. Um poeta poderá ainda existir, não pode é já ter voz. E quando a voz de algum se ouve ou vem do passado através do texto escrito consagrado, é transformada num lugar comum repetido sem compreensão, tanto mais repetido quanto mais o poeta se tiver tornado icónico, num vácuo absurdo próprio de tudo quanto é dito pela gente. Se algum verdadeiro poeta conseguir fazer ouvir a sua voz, ainda teria de sobreviver a essa segunda morte de se tornar icónico e isso é impossível nesta época. Tudo é consumido, tudo é operado, tudo é calculado e não há lugar para a habitação do homem na terra de que falava o poeta. A morte do poeta domina, pois, esta época, mesmo que algum poeta subsista. Ele não terá voz e, se a tiver, será rapidamente deformada na sua antítese.

Como pode sequer fazer sentido falar de ressurreição? Não faz, mas também não fazia a do passado. O ressurreto do passado não veio dizer grande coisa após a morte. Isso é, aliás, a maior prova de se tratar de um postiço, um cenário, algo extrínseco à existência em causa. Para quê voltar se nada de novo tinha a dizer? A sua ressurreição foi entendida pelos crentes apenas como uma forma de fornecer uma promessa de vida eterna. E assim mais uma ilusão foi reforçada, sem que isso trouxesse a menor vantagem aos iludidos. Qualquer ilusão é prejudicial e a história tresloucada da humanidade é, no fundamental, a história dessas ilusões. A única redenção possível seria a libertação de todas as ilusões. É possível? Não. Pensar tal possibilidade é como pensar a possibilidade de todos os toxicodependentes se libertarem das drogas. Aliás, nem é uma analogia, é apenas parte desse universo de ilusões que desorienta a humanidade para o caos. Porém, o ressurreto do passado também prometia a vida eterna apenas para quem seguisse os seus passos. Alguém os seguiu? Algum dos seus seguidores cumpriu o ideal expresso no sermão da montanha? Sobretudo, depois de o tornar icónico, o importante era adorá-lo, repetir gestos rituais, até se martirizar, mas não realizar esse ideal. Também ele sofreu uma segunda morte ao tornar-se icónico. Poderá um ressurreto que procure libertar pessoas das ilusões ter melhor sorte? Certamente que não. O melhor que lhe poderia acontecer era não ter seguidores. Sempre se pouparia, assim, a essa morte. Mas é próprio da natureza humana, talvez da própria vida, tentar impossíveis. E este é o relato de uma dessas tentativas, inevitavelmente destinada ao malogro, ou pior ainda, a significar exatamente o inverso do intencionado.

Qual o objetivo então? Nenhum. O objetivo de tentar é tentar. Neste caso, nem se trata de fazer renascer o poeta. Também o antigo renascido vinha diferente, deixara de reagir da mesma forma, parecia apenas uma imagem assombrada da antiga vida e do recente sofrimento. A promessa que então trazia parecia distante e desfocada, não concreta e humana, simultaneamente transcendente e espetral, já com os decretos eternos na boca e a omnipotência de um penetrante e sobrenatural olhar. Quem, o quê renascerá? Não um poeta, não um profeta, não um aedo – antes, uma reminiscência deles todos e muitos outros, uma voz vinda dos confins da terra onde tinha sido depositada, para cumprir os seus decretos, um eco de uma outra época em que as palavras ainda eram embarcações de sentido, ainda encantavam almas que ainda existiam, ainda derramavam sensações em quem as escutava, um ressoar subliminar do tanto que ficou esquecido, enterrado, deformado, desfigurado até ao ponto de não ser mais reconhecível.

Vivi a morte do poeta na minha carne, percorrendo da angústia ao desespero toda a escala do excesso e exaustão de sentido. Vivi a morte do poeta até por ter sobrevivido como morte do poeta. Vivi a morte do poeta na agonia de subsistir no tempo público, no tempo de horários e calendários e planificações, incapaz da projeção que fazia do poeta temporalidade num ser para a morte assumido na mais plena das existências. Vivi e vivo a morte do poeta e sou incapaz da sua ressurreição. A sua ressurreição emergiu da evocação necessária do passado do espetro do poeta para poder completar o seu jazigo. Mas a evocação conseguiu sobreviver ao objetivo para que foi executado o feitiço. Paira agora em todos os cenários da minha mente, mais assombração que nunca, maldição ou premonição, prenúncio não sei de que prodígio, de que aberração, de que portento. Nada mais posso fazer que observar o fenómeno a se desenrolar. Talvez o seu desdobrar traga desvelamento, revelação, advento, talvez se encerre na mais impotente frustração, talvez permita desfazer mais algumas ilusões. Talvez traga só mais incerteza, talvez seja apenas um talvez, talvez apenas anuncie quem possa fazer renascer de vez. Insondável será mesmo após ter ocorrido. E eu só aqui estarei para relatar, externamente, o sucedido. O olhar não se olha a si mesmo. Eu, a morte do poeta, serei mero olhar após a ressurreição. E o que verei ser-me-á estranho.


© Joaquim Lúcio, ressurreição



[1] O truque nem sequer é novo, já foi muitas vezes levado a cabo. Por mero exemplo, a apologética cristã ainda anterior à patrística apresentava o cristianismo como realização da filosofia.

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