"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

O Armagedão

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            Um dos três jovens originais, o mais novo, que ficou mais distante da possibilidade de agressão, veio ter um dia sozinho com o renascido. Tinha deduzido das palavras anteriores deste que ele previa um armagedão nuclear. Evoluiu da angústia para o desespero e visivelmente não dormia bem há muito. Dilacerava-se e a sua inquietação era tal que vinha procurar eventual tranquilização junto de quem menos estaria disposto a dá-la, o renascido.

 

– Para quê fazer seja o que for

se tudo irá em breve terminar

para quê viver alegria e dor

se a humanidade não continuar

para quê criar esperanças de futuro

se este será bloqueado por um muro

para quê expetativas, trabalho e afã

se já se sabe que não haverá um amanhã?

 

– Vivi toda a minha vida, esta e a anterior

sob a ameaça do icónico cogumelo

Mas os consumidores cansaram-se desse pesadelo

e preferiram aterrorizar-se umas décadas

com outros fantasmas tétricos coletivos

E parecia aos habitantes de todo o planeta

que já não existia qualquer ameaça, como tudo

o que os media decidem não colocar na sua agenda

Na verdade, nunca se arriscou tanto tal possibilidade

quanto nesses anos de tranquilizadores pesadelos

sobre outras desgraças, outros destinos milenares

outros apocalipses, outros pânicos, outras chacinas

sendo o atual novo velho terror apenas resultado

do arrojo com que se estava a lidar com tal poder

capaz de devolver a crosta da terra aos primórdios

como se nada fosse e nada tivesse de ser considerado

enquanto se encolhiam a um poder minúsculo

apenas por este ameaçar com um ou outro cogumelo

 

Não sei se a loucura coletiva aí chegará

Noutros tempos, os fanfarrões foram levados para as traseiras

mas agora exibem-se constantemente na teletela

e as gentes estão convencidas que varrerão o inimigo

para debaixo do tapete das potências obsoletas

com uma saraivada de mísseis muito mas muito mais modernos

sem que se sinta por aqui qualquer efeito

protegidos que estamos pelo escudo mágico

produzido pelos grandes estúdios cinematográficos

Noutras guerras anteriores, a fanfarronice era a mesma

e nas vésperas da conflagração tudo o resto era cancelado

tornado antipatriótico, defensor dos inimigos, traidor

Os media promovem esse ambiente

mas pode ser que os poderes ainda não estejam

totalmente tomados por psicóticas bazófias

Mas é apenas uma questão de duração 

pouco ou muito, com estas ou piores armas ainda

os homens encontram sempre razões que justificam

os espetros que animam seus delírios

 

Temes que acabe o mundo

mas o mundo já acabou muitas vezes para muitos

Os índios que viviam fundidos com a selva

e que só tinham nomes e linguagem e evocações

para esse mundo verde entretecido pelos deuses

simbolicamente participado em cada animal, planta e rocha

como poderiam sequer existir obrigados a viver

em infetos bairros de lata nos arrabaldes das cidades

após a cobiça e a ganância lhes terem arrasado e roubado o lar?

Os beduínos corrompidos pelo luxo do ouro negro

não sonharão nos seus absurdos arranha-céus

com o perdido mundo de que foram despojados

os infindos desertos ali mesmo ao lado

e, porém, tão estranhos como se fossem de outra dimensão?

Os ashkenazi que escaparam ao extermínio

puderam voltar às suas casas, às suas cidades e aldeias

ao seu pequeno mundo ou antiga ambiência

como se tivessem apenas voltado de umas longas férias?

O mundo rural do país na minha infância

entregue às ruínas, aos incêndios e aos últimos idosos não suicidários

existirá ainda nos esforços de recuperação turística

ou isso é apenas mais um cenário oferecido

para a ilusão de uma lembrança no mais radical dos esquecimentos?

E será diversa a cidade onde nasci?

 

Goebbels preferiu tirar a vida dos seis filhos

porque não concebia a possibilidade de sua existência

no caos sem mundo que se seguiria à derrota

Mas até leprosos constituíram comunidades

e aprenderam a viver em conjunto a sua condição

Quem sabe se não existiriam sobreviventes do holocausto nuclear

e se também não aprenderiam a viver com a sua condição

as suas doenças, as suas feridas, as suas mutações

o seu inverno duradouro, os seus estranhos alimentos

a presença constante da morte em tal precaridade

e, porém, a vida, apesar de tudo, a brotar em cada canto?

Não teriam cultos novos, novos sortilégios

não estruturariam de novo paredes de algum mundo

não haveria poetas, profetas, divinos loucos

que redescobrissem o encantamento e maldição da palavra

não teriam rituais, insólitas danças, ritmo e melodia nalgum som?

E, caso nem mesmo isso houvesse

nem homens, nem uma sua estranha derivação

estás assim tão apegado à destinação da espécie

que te importe a mesma para lá da tua morte?

Farão os teus atos apenas sentido se contribuírem

para algum futuro de alguma humanidade?

Afinal, não estás tão desenraizado quanto tu próprio te julgavas  

ainda tens consciência que nada és senão membro de uma espécie

e, por aí, pois a espécie nada mais é que sua transitória manifestação

poderás ter consciência da pertença à própria vida

 

A vida não será erradicada

nem que se reduza a bactérias extremófilas

Mas tudo volta a ser questão de duração

Tudo parece destinado à perdição

vida, planetas, estrelas, galáxias

a busca da sua preservação é fútil

apenas adiamento do inevitável

Mas isso tudo o que importa à tua consciência

não lhe encontras sentido em si se não o reportares

a algo que transcende completamente

aquilo que podes fazer, agir, viver?

 

Percorremos essas redes sociais

e podemos ver aí os sintomas iniciais dessa doença

Mulheres despeitadas lançam supostas indiretas

aos seus antigos parceiros de que já nada querem, dizem, saber

declarando que se deve zelar por uma mulher

dar-lhe isto e aquilo e não sei mais o quê

se se quer preservá-la no futuro

Homens ressentidos com o que deram

apostam ir tratar sem consideração as futuras

raivosos com a ingratidão das já passadas

Nem sombra de consciência do sexismo

da conceção das relações como comércio

e das mulheres como produto de compra e venda

mercadoria cujo valor se especula ou deprecia

que perpassa por ambos os tipos de declarações

Lições de sabedoria julgam dar

os que aconselham os comportamentos das famílias

dos professores, dos empresários, dos políticos

apontando as nefastas consequências

E se não conseguirem escoamento do ressabiamento

acabam a afirmar a lei do karma

nem sequer entre encarnações, mas nesta mesmo

contra todas as múltiplas evidências factuais

É curioso como quem fica sempre surpreendido

com tudo o que público acontece

mesmo se longamente anunciado

ou facilmente inferível do que ia ocorrendo

por ser incapaz da mais elementar dedução causal

está sempre disponível para estas sentenças consequenciais

extraídas da lógica formal do ressentimento

 

Um gesto de carinho não tem valor pelas consequências

mas pela sua própria fruição e pelo cuidado de outro

e ambos serão o mesmo se o gesto for autêntico

e não uma manha para alcançar seja o que for

Um rosto que se abre, abre-se aqui e agora 

como um portal de possibilidade de empatia e conversa

e amor e incompreensão e ódio e rancor

tudo aqui e agora e não como promessa de delícias

de futuro, de família, de parceria, de traição

Uma agressão vale por si e não pela possibilidade

de toda uma vida de violência e terror e opressão

Os compromissos são belos e fundam a temporalidade

mas são sempre feitos e mantidos aqui e agora

e assim também acabarão por ser traídos

O que acontecer, acontecerá

e não virá do nada como nada vem

mas, se cada gesto for feito para uma consequência

nunca nada terá valor em si para a consciência

e também nada terá valor além

pois quando se tornar aquém

irá só ser considerado pelos seus efeitos

Ou algo é valioso em si mesmo para ti

ou buscarás o valor para sempre sem o encontrar em lado algum

 

Imagina que te era dado o botão

para exterminares a humanidade

Não o carregarás pelo futuro

que já sabes que acabará como tudo em geral tem de acabar?

Pensas que a espécie possui uma qualquer superioridade

que a faz valer mais que tudo o resto na natureza?

Como pensar assim uma espécie destruidora

de todo o ambiente de que vive e sobrevive?

Vale dessa forma por ser construtora de seus próprios pesadelos

por criar cidades que os seus próprios habitantes não conseguem suportar

mas em que estão viciados e de que nem pensam em se livrar?

Não seria misericordioso pôr fim a uma tal espécie enferma e ensandecida?

Será uma qualquer ordem moral

que impedirá exterminar a espécie que não cessa de tudo exterminar?

Ou será Deus que te impedirá de carregar o botão

esse super-homem que a psicose coletiva

projeta com mais poderes que qualquer super-herói

da frustração e desejo de retaliação popular?

Imagina que estavas feio e disforme, gordo e velho

que tinhas sido oprimido toda a vida

que tinhas sido traído por cada uma das tuas relações

quer amores, quer amizades, quer sócios, quer patrões

que nunca tinhas realizado qualquer um dos teus sonhos

daqueles capazes de orientar toda uma vida

– não é preciso imaginar muito, isso é o habitual para a maioria

– porque razão não carregarias no botão?

 

            O renascido ficou à espera de uma resposta que já sabia que não viria. Deixou passar um bocado e continuou:

  

Carregarias então no botão?

Todo o teu organismo se revolta

e é bem saudável que assim seja

Mas nenhuma dessas razões que os homens buscam

se aguentariam à menor questionação

Significa que não há uma razão?

A razão é o aqui e agora

não nenhuma transcendência de pacotilha

martelada para dizer um qualquer disparate que nos convém

Há que dizer é porque nos convém o disparate

 

Acordo ainda com os sonhos embrulhados na consciência

estou dormente por qualquer motivo inconsciente

ainda de olhos fechados

ouço os sons, até desagradáveis dos vizinhos

mas não é desagradável poder ouvi-los

abro os olhos e vejo a humidade a escurecer as paredes

o voo volteante de uma mosca

olho pela janela, para fora, vejo o azul do céu

o verde cambiante das mil folhas da árvore em frente

estendo o braço e a solidez da parede resiste-me

o meu corpo pesa sobre a cama

e eu espreguiço-lhe o peso para longe

cada meu gesto, minha sensação, meu pensamento

até a dor que me surge atrás nas costas

é fruído no prazer de só estar vivo

Saio, encontro um outro que cheira mal

procuro fugir-lhe, encontrar um rosto mais apelativo

encontro ou não encontro, falo, ando, gesticulo

outros habitam constantemente o mundo

abrem portas que não dão para lado algum

e eu saúdo-as, evito-as, persigo-as, falo

digo algo para quem me não compreenderá

mas que me ouviu e eu lá sigo

sigo para onde, para quê?

sigo para ver mais azul e ouvir mais som

e gesticular mais e falar mais

e por esse puro estar vivo só por estar vivo

é que eu não carrego no botão

Estou deprimido, sem qualquer desejo de viver

acabo por decidir o suicídio, mas primeiro dão-me o botão

Porque não carregá-lo agora?

Porque esses outros que me habitavam o existir

poderão, já que eu já não posso, também fruir

E se eu não encontrar aqui uma razão

nada impedirá que eu carregue o botão

 

Pelo contrário, são os fantasmas que assombram

a mente humana com esperanças e expetativas

que são capazes de criar uma alienação tal

deste estar vivo numa alucinada dimensão visada

– além religioso, os amanhãs que cantam na sociedade sem classes   

a grandiosa destinação nacional, a distópica utopia técnica –

que faça esquecer a elementar razão para querer estar vivo

e aí, para a realização do fantasma ou por frustração

é sempre possível que se carregue o botão

 

Não falta gente a dizer que é preciso uma nova ordem

para evitar que isso aconteça

Não, é preciso é convencer os homens

que qualquer nova ordem será um novo pesadelo

e que se deve fazer tudo para desacreditar esses fantasmas

e só acreditar na fruição do mundo com os outros

Provocará isso pobreza, deixaremos de lutar pelo crescimento

Ótimo, não são precisos grandes gastos para cheirar o campo

para comermos apenas o que precisamos

e para falarmos com um amigo ou só um conhecido

Seria boa forma de diminuir a agressão planetária

Zelar pelo pouco é bem mais importante

que arquitetar fantásticos horizontes

e se morrermos de fome, morreremos

até o fim poderemos olhar as cores, inspirarmos e falar

sentir a brisa, ouvir o mar, fechar os olhos e sonhar

Sempre seria melhor que caminhar para o abismo

provocado pela fantasmática ansiedade e egoísmo

que apenas procura transformar tudo em consumo

e espera, depois, que um milagre nos forneça um rumo

 

            O jovem, aliviado por desabafar e aliviado pelas palavras do renascido, não reparou que ele não tinha posto de parte o objeto do seu medo. Tranquilizado, foi embora habitado por estranha e nova serenidade. Na verdade, não precisava de temer o cogumelo, não sobreviveria o suficiente para ser sua vítima.


© Joaquim Lúcio, ressurreição

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