"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

terça-feira, 26 de abril de 2022

Abril

63

          Mais uma sessão solene para dizer palavras cheias de significado para os patetinhas dentro dos ecrãs. Colaboram na intriga, o que se disse ou não se disse de forma velada ou críptica, e nada, rigorosamente nada, terá qualquer sentido para quem procure sondar o ventre do amanhã. Repetem-se canções e poemas icónicos esvaziados do significado original, formalidades rituais destinadas a secar a memória daquela manhã que trouxe a voz para dizer a fome antiga. Importa fingir que se está a dizer o poema inicial, importa calá-lo pela sua exaustão e regressar, como se tivesse sido alguma vez interrompido, ao discurso que se diz político ou solene ou pragmático. E que entreguem a poesia aos burgueses diletantes que impedirão qualquer ressurreição do significado da manhã. Eles extinguirão o lugar da fala e deixá-lo-ão, como até aqui, à mercê do homem unidimensional, o homem do cálculo, da operação, da propaganda, do poder, o último homem, o homem tanto mais absoluto quanto mais mesquinho, natural e invisível. Enquanto transmitiam a sessão, o renascido via e ouvia noutro ecrã um desses poetas de vacuidades consagrado e era notório como se sentia incomodado. A dupla e complementar profanação, a da poesia e a da revolução, ambas poema, ambas transgressão, ambas conspurcadas pela apropriação por caricatura, fraude e impostura, era demasiado repugnante e, ao questionarem-no, respondeu:

 

É urgente defecar na metáfora infinita

para permitir que o dizer possa respirar

A palavra encontra-se sequestrada na sanita

despejada por sopradores do vozear

 

É urgente libertar o discurso dos grilhões

resgatá-lo da boca putrefacta do pedante

arrancá-lo à ausência de sentidos e razões

purgá-lo da lama gongórica, do insignificante

 

É urgente tornar de novo a palavra proclamada

a palavra do profeta, do protesto, da denúncia

antídoto da indiscernível velada e abafada

 

É urgente percuti-la vibrante e percebida

é urgente que versos se possam entender

é urgente que a voz algo enfim diga

 

*

 

Na manhã dos cravos, o poeta foi ouvido

porque sua voz ressoava de destino

em cada palavra, dizia e era percebido

cada som, indicava a rota e o caminho

 

Mesmo surreais combinadores de sons à toa

sentiram necessidade enfim de limpidez

e fizeram sua voz significar Lisboa

por fim redimida da mordaça e da mudez

 

Devia ter sido advento de sentido eterno

mas calou-se logo após ser proferido

À primavera sucedeu o frio inverno

 

Só o tecnocrata seria em breve ouvido

o discurso burocrata, do mercado, da usura

Começara nova e mais insidiosa ditadura

 

*

 

Toda a ditadura é uma ditadura da linguagem

O objetivo é sempre fazer pensar o que se quiser

Para romper tal armadura, há que ter muita coragem

Ficará abandonado quem a tal opressão se opuser

 

Enfileiram-se reumáticos os poetas do regime

nunca perecem entre os folhos do serôdio

renascem no privilégio de cada elite séria e letrada

tão esforçada para não incomodar e dizer nada

 

Apesar de tão titulares censores a impedirem

é urgente fazer medrar a palavra impertinente

erva daninha irrompendo entre as pedras da calçada

 

Grafitem-se as traseiras dos serviçais e do regente

Só o escândalo do poema cru e indecente   

germinará cravos numa manhã inesperada


© Joaquim Lúcio, 25/4/22, ressurreição, pp. 240-241

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