"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Notas técnicas ou desnecessárias

     Repararão alguns que dispensei sempre vírgulas e pontos no final dos versos. Se um verso não é uma unidade rítmica, é o quê? Hoje, quase parece proibido considerá-lo dessa forma e faz-se questão de desconstruí-lo. Admito que possa ser uma apresentação gráfica e, por isso, mais ligada às artes plásticas que à música. Porém, em muitos casos, também não vejo onde está a expressão plástica. Logo, porque não a prosa? É notório que sou conservador, para não dizer reacionário ou obsoleto. Claro que se pode questionar se não seguir os modelos em voga porque sim, se não se conformar com a moda estabelecida já há muito, não será ser, de algum modo, rebelde… Para mim, o verso continua a ser uma unidade rítmica e, por vezes, nem na prosa a dispenso. Sê-lo-á de forma livre, em muitos casos, como em muita música contemporânea, mas não deixa de o ser. Daí, vírgulas e pontos me terem parecido, neste volume, sempre redundantes no final dos versos. Quanto ao meio, já dependerá da composição que me apeteceu. Aliás, se me apetecer, também a unidade rítmica terá exceções.


     Outra nota redundante, sobretudo tendo em conta o escrito quer no Jazigo, quer aqui, é a relativa ao meu nome. Joaquim Lúcio não é um pseudónimo, nem um heterónimo. É um criptónimo. Desde os 13 anos, influenciado pelas Confissões de Lúcio e por mais uma série de palermices místicas (relacionadas com a luz, claro), acrescentei ao meu nome um segundo nome próprio, Lúcio. A rubrica que adotei nessa mesma altura e que usei sistematicamente em tudo quanto é documento até hoje, contém um L corrido entre o J e o primeiro N. Assim, desde essa altura, mais ou menos secretamente, adotei esse nome, não como um heterónimo, mas como um nome próprio. Quando resolvi tornar públicos os meus antigos textos no Jazigo, adotei esse nome não por qualquer razão honrosa, por puro e simples medo. Tive medo que os meus textos mais arrojados, obscenos ou radicais me trouxessem problemas na vida profissional. A pouco e pouco, descansei, por dois motivos: quase ninguém lê nada e, para que os censores chegassem aos meus textos, seria preciso ganhar notoriedade e, ainda assim, seria preciso que alguém os sinalizasse; além disso, a minha própria situação familiar permitiu-me passar a correr riscos sem temer por outros. Ao fim e ao cabo, o criptónimo tornou-se inútil, mas já o tinha estabelecido e não havia razões para o alterar. Em alguns textos ortónimos, refiro-me a mim próprio na 3ª pessoa como Lúcio. Isso apenas aconteceu não por vaidade sem nexo, mas por ainda manter, nessa altura, algum temor e pretender poder operar algum recuo em caso de ataque pessoal. Quase certamente, isso já não seria possível, mas, na altura, tranquilizava-me um pouco.

     Quanto ao assunto de fundo, não vejo qualquer sentido quer na heteronomia, quer até na pseudonomia. Considero a heteronomia uma extensão da ilusão das identidades já denunciada no Jazigo. Claro que se podem criar personagens, tal como ocorre neste mesmo livro, e é isso mesmo a que corresponde cada identidade. Não se trata de uma substância, mas de uma construção objetal relativa a si próprio, fictícia em geral aliás e não apenas nos heterónimos, que se situa ao nível da representação e não ao nível do representar. A consciência como consciência sempre de qualquer coisa, pode fazer de si própria um objeto, mas é uma ilusão grosseira julgar que há um nível superior de reflexão que permite o acesso à natureza da consciência tal como ela é para si. Talvez se possa admitir uma consciência imediata de si, mas, se não se quiser cair na ilusão substancialista que cria apenas uma ficção que não corresponde a nada que não talvez os desejos e medos em relação a si, essa consciência será, na melhor das hipóteses, adverbial, acompanhando as coisas projetadas e caracterizadas, acompanhando os processos verbais, um mero acompanhamento incapaz e impotente de tudo quanto está a acontecer na própria mente. A minha rejeição da heteronomia advém apenas de ela querer dar nomes e quase rostos fixos, quando o eu é constantemente outro para si próprio, podendo cada poema, cada verso, cada palavra ter uma assinatura diversa. De facto, a heteronomia é uma forma de querer estancar a terrível e potencialmente infinita fragmentação do eu, é uma forma de se proteger contra a loucura, uma forma de congelar o fluir múltiplo em algumas configurações, uma forma de manter a loucura fora de si, um exorcismo como aquele que foi feito primordialmente pela humanidade ao colocar fora de si os seus delírios, os seus desejos, os seus medos, tornando-os referência exterior sagrada, os mitos. Eu, seja lá o que isso for, assumo como própria essa potencialmente infinita fragmentação.

 

      Por fim, tal como no Jazigo, o sinal ► indica que a estrofe não acaba na presente página. Quanto a outras questões, como a origem do meu termo “gente”, já foram esclarecidas em muitos outros textos, mas posso referir tratar-se de uma tradução livre do das Man heideggeriano. Quanto a outros termos menos familiares, ou acabam por se compreender por si, ou qualquer razoável dicionário europeu de filosofia os esclarece.


© Joaquim Lúcio, ressurreição

1 comentário:

No tempo em que ainda escrevíamos poemas

No tempo em que ainda escrevíamos poemas (ontem só e, porém, um abismo intransponível entre o que houve e o que ficou), no tempo em qu...