"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 29 de outubro de 2022

ressurreição

No subúrbio, ninguém tem nome. Se parece tê-lo, ao menos para alguns, em breve será esquecido, em breve nunca terá existido. O anonimato é a sua essência. Os seus habitantes têm rostos, mas ninguém os quer reconhecer; têm mãos, mas ninguém lhes reconhece o valor; têm sangue, mas só serve as manchetes quando criminal ou policialmente derramado. Deles depende toda a aparente vida da cidade, sem eles, nem as paredes dos privilégios se segurariam para ver nascer um outro dia – porém, são desprezados pelos abastados e poderosos até o ponto de nem terem consciência do desprezo. A vida é, para estes, só o que ocorre na metrópole, as relações estabelecidas entre gente reconhecida como pessoas pelo nome.

No caos dos privilégios, o nome parece essencial, cada qual já tem, ao nascer, identidade, carreira política, empresarial ou universitária, lugar por trás de um avental, editora, publicidade mediática, lugar de comentário televisivo, lisonja garantida nos eventos, o caminho aberto por ser filho de algo. Só no centro da urbe ou nos subúrbios do deleite se reconhece a existência e em lado algum a morte habita menos cada gesto, expressão, manha, pensamento ou dito recorrente, que no antro do luxo perdulário. Os que têm nome são o inimigo, o inimigo mortal nascido da anulação da massa imensa do subúrbio e estão em todos os partidos, em todos os sindicatos, em todas as igrejas, em todos os clubes, em todas as associações, em todas as “espiritualidades”, em todas as academias, em todas as agremiações, ao menos se tiverem algum porte, para garantir que só os que têm nome terão lugar em algum palanque. Este livro é dedicado aos que não têm nome e até os privilegiados serão nele despidos de nome. A possibilidade de pessoa não precisa de nome, precisa de ser a sua diferença, precisa de viver a sua vida, libertar-se do oceano asfixiante da manada, ser o rosto que se nega à massa do subúrbio. A pessoa é a sua diferença ou não é nada, não precisa de ornamentos e o nome tão distintivo dos privilegiados não passa da decoração com que se disfarça o vazio essencial.

Este livro não foi feito para agradar a ninguém. Se alguém que o lesse, o aceitasse de ponta a ponta, ficaria muito preocupado. Um dos principais objetivos é a denúncia de ilusões e o ser humano precisa de ilusões quase tanto quanto de alimento. Pode com facilidade e até prazer acusar e denunciar as dos outros, mas agarra-se às suas como se fosse questão da sua própria sobrevivência. Mas cada uma dessas ilusões é apenas uma forma de atormentar a mente, um vício, uma alucinação que, se não for um pesadelo imediato, sê-lo-á nas suas consequências. Tal como um toxicodependente, cada qual agarra-se a essas ilusões que lhe destroem cada vez mais a existência e que em nada lhe permitem lidar com o real, como se fossem mais relevantes que a própria vida. Daí o imperativo de as denunciar. Se o livro peca por algo em relação ao projetado, é por ter sido encurtado nessa denúncia, dado o porte que estava a alcançar.

Chegou a hora de desbravar novos caminhos. Boa parte desses caminhos passará pelo derrube, já iniciado neste livro, das minhas próprias derradeiras ilusões. Deixo a outros a fabricação de mistificações que as gentes deglutem famélicas de alienação. Para mim, reservo o olhar cru que já referia no meu primeiro livro ausência. E, porém, também o olhar cru pode ser um sonho, pode ser um pesadelo, pode ser alienação. A ressurreição pode ser morte, pode ser maldição, pode ser apenas um desvio para uma mais completa aniquilação. Poderá um sonho, um pesadelo, um delírio dizer algo que faça ver para além dos véus? Não será o destino, este destino, apenas nova mistificação? Não poderá uma mistificação ser uma manha do desvelamento? E renascer apenas o início de um novo velamento?

Este livro não foi feito para agradar a ninguém, nem sequer a mim próprio... Caminhará sozinho por seus desertos e será esquecido, como cada habitante do subúrbio. Na verdade, cada sujeito de si próprio tão convencido também só sobreviverá nos anais privilegiados para reter a ilusão de quanto foi importante o seu vazio... Os passos andam sempre sem destino, o caminho só a si mesmo se caminha, a procura só a si própria se encontra...

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sexta-feira, 23 de setembro de 2022

O Armagedão

 67

            Um dos três jovens originais, o mais novo, que ficou mais distante da possibilidade de agressão, veio ter um dia sozinho com o renascido. Tinha deduzido das palavras anteriores deste que ele previa um armagedão nuclear. Evoluiu da angústia para o desespero e visivelmente não dormia bem há muito. Dilacerava-se e a sua inquietação era tal que vinha procurar eventual tranquilização junto de quem menos estaria disposto a dá-la, o renascido.

 

– Para quê fazer seja o que for

se tudo irá em breve terminar

para quê viver alegria e dor

se a humanidade não continuar

para quê criar esperanças de futuro

se este será bloqueado por um muro

para quê expetativas, trabalho e afã

se já se sabe que não haverá um amanhã?

 

– Vivi toda a minha vida, esta e a anterior

sob a ameaça do icónico cogumelo

Mas os consumidores cansaram-se desse pesadelo

e preferiram aterrorizar-se umas décadas

com outros fantasmas tétricos coletivos

E parecia aos habitantes de todo o planeta

que já não existia qualquer ameaça, como tudo

o que os media decidem não colocar na sua agenda

Na verdade, nunca se arriscou tanto tal possibilidade

quanto nesses anos de tranquilizadores pesadelos

sobre outras desgraças, outros destinos milenares

outros apocalipses, outros pânicos, outras chacinas

sendo o atual novo velho terror apenas resultado

do arrojo com que se estava a lidar com tal poder

capaz de devolver a crosta da terra aos primórdios

como se nada fosse e nada tivesse de ser considerado

enquanto se encolhiam a um poder minúsculo

apenas por este ameaçar com um ou outro cogumelo

 

Não sei se a loucura coletiva aí chegará

Noutros tempos, os fanfarrões foram levados para as traseiras

mas agora exibem-se constantemente na teletela

e as gentes estão convencidas que varrerão o inimigo

para debaixo do tapete das potências obsoletas

com uma saraivada de mísseis muito mas muito mais modernos

sem que se sinta por aqui qualquer efeito

protegidos que estamos pelo escudo mágico

produzido pelos grandes estúdios cinematográficos

Noutras guerras anteriores, a fanfarronice era a mesma

e nas vésperas da conflagração tudo o resto era cancelado

tornado antipatriótico, defensor dos inimigos, traidor

Os media promovem esse ambiente

mas pode ser que os poderes ainda não estejam

totalmente tomados por psicóticas bazófias

Mas é apenas uma questão de duração 

pouco ou muito, com estas ou piores armas ainda

os homens encontram sempre razões que justificam

os espetros que animam seus delírios

 

Temes que acabe o mundo

mas o mundo já acabou muitas vezes para muitos

Os índios que viviam fundidos com a selva

e que só tinham nomes e linguagem e evocações

para esse mundo verde entretecido pelos deuses

simbolicamente participado em cada animal, planta e rocha

como poderiam sequer existir obrigados a viver

em infetos bairros de lata nos arrabaldes das cidades

após a cobiça e a ganância lhes terem arrasado e roubado o lar?

Os beduínos corrompidos pelo luxo do ouro negro

não sonharão nos seus absurdos arranha-céus

com o perdido mundo de que foram despojados

os infindos desertos ali mesmo ao lado

e, porém, tão estranhos como se fossem de outra dimensão?

Os ashkenazi que escaparam ao extermínio

puderam voltar às suas casas, às suas cidades e aldeias

ao seu pequeno mundo ou antiga ambiência

como se tivessem apenas voltado de umas longas férias?

O mundo rural do país na minha infância

entregue às ruínas, aos incêndios e aos últimos idosos não suicidários

existirá ainda nos esforços de recuperação turística

ou isso é apenas mais um cenário oferecido

para a ilusão de uma lembrança no mais radical dos esquecimentos?

E será diversa a cidade onde nasci?

 

Goebbels preferiu tirar a vida dos seis filhos

porque não concebia a possibilidade de sua existência

no caos sem mundo que se seguiria à derrota

Mas até leprosos constituíram comunidades

e aprenderam a viver em conjunto a sua condição

Quem sabe se não existiriam sobreviventes do holocausto nuclear

e se também não aprenderiam a viver com a sua condição

as suas doenças, as suas feridas, as suas mutações

o seu inverno duradouro, os seus estranhos alimentos

a presença constante da morte em tal precaridade

e, porém, a vida, apesar de tudo, a brotar em cada canto?

Não teriam cultos novos, novos sortilégios

não estruturariam de novo paredes de algum mundo

não haveria poetas, profetas, divinos loucos

que redescobrissem o encantamento e maldição da palavra

não teriam rituais, insólitas danças, ritmo e melodia nalgum som?

E, caso nem mesmo isso houvesse

nem homens, nem uma sua estranha derivação

estás assim tão apegado à destinação da espécie

que te importe a mesma para lá da tua morte?

Farão os teus atos apenas sentido se contribuírem

para algum futuro de alguma humanidade?

Afinal, não estás tão desenraizado quanto tu próprio te julgavas  

ainda tens consciência que nada és senão membro de uma espécie

e, por aí, pois a espécie nada mais é que sua transitória manifestação

poderás ter consciência da pertença à própria vida

 

A vida não será erradicada

nem que se reduza a bactérias extremófilas

Mas tudo volta a ser questão de duração

Tudo parece destinado à perdição

vida, planetas, estrelas, galáxias

a busca da sua preservação é fútil

apenas adiamento do inevitável

Mas isso tudo o que importa à tua consciência

não lhe encontras sentido em si se não o reportares

a algo que transcende completamente

aquilo que podes fazer, agir, viver?

 

Percorremos essas redes sociais

e podemos ver aí os sintomas iniciais dessa doença

Mulheres despeitadas lançam supostas indiretas

aos seus antigos parceiros de que já nada querem, dizem, saber

declarando que se deve zelar por uma mulher

dar-lhe isto e aquilo e não sei mais o quê

se se quer preservá-la no futuro

Homens ressentidos com o que deram

apostam ir tratar sem consideração as futuras

raivosos com a ingratidão das já passadas

Nem sombra de consciência do sexismo

da conceção das relações como comércio

e das mulheres como produto de compra e venda

mercadoria cujo valor se especula ou deprecia

que perpassa por ambos os tipos de declarações

Lições de sabedoria julgam dar

os que aconselham os comportamentos das famílias

dos professores, dos empresários, dos políticos

apontando as nefastas consequências

E se não conseguirem escoamento do ressabiamento

acabam a afirmar a lei do karma

nem sequer entre encarnações, mas nesta mesmo

contra todas as múltiplas evidências factuais

É curioso como quem fica sempre surpreendido

com tudo o que público acontece

mesmo se longamente anunciado

ou facilmente inferível do que ia ocorrendo

por ser incapaz da mais elementar dedução causal

está sempre disponível para estas sentenças consequenciais

extraídas da lógica formal do ressentimento

 

Um gesto de carinho não tem valor pelas consequências

mas pela sua própria fruição e pelo cuidado de outro

e ambos serão o mesmo se o gesto for autêntico

e não uma manha para alcançar seja o que for

Um rosto que se abre, abre-se aqui e agora 

como um portal de possibilidade de empatia e conversa

e amor e incompreensão e ódio e rancor

tudo aqui e agora e não como promessa de delícias

de futuro, de família, de parceria, de traição

Uma agressão vale por si e não pela possibilidade

de toda uma vida de violência e terror e opressão

Os compromissos são belos e fundam a temporalidade

mas são sempre feitos e mantidos aqui e agora

e assim também acabarão por ser traídos

O que acontecer, acontecerá

e não virá do nada como nada vem

mas, se cada gesto for feito para uma consequência

nunca nada terá valor em si para a consciência

e também nada terá valor além

pois quando se tornar aquém

irá só ser considerado pelos seus efeitos

Ou algo é valioso em si mesmo para ti

ou buscarás o valor para sempre sem o encontrar em lado algum

 

Imagina que te era dado o botão

para exterminares a humanidade

Não o carregarás pelo futuro

que já sabes que acabará como tudo em geral tem de acabar?

Pensas que a espécie possui uma qualquer superioridade

que a faz valer mais que tudo o resto na natureza?

Como pensar assim uma espécie destruidora

de todo o ambiente de que vive e sobrevive?

Vale dessa forma por ser construtora de seus próprios pesadelos

por criar cidades que os seus próprios habitantes não conseguem suportar

mas em que estão viciados e de que nem pensam em se livrar?

Não seria misericordioso pôr fim a uma tal espécie enferma e ensandecida?

Será uma qualquer ordem moral

que impedirá exterminar a espécie que não cessa de tudo exterminar?

Ou será Deus que te impedirá de carregar o botão

esse super-homem que a psicose coletiva

projeta com mais poderes que qualquer super-herói

da frustração e desejo de retaliação popular?

Imagina que estavas feio e disforme, gordo e velho

que tinhas sido oprimido toda a vida

que tinhas sido traído por cada uma das tuas relações

quer amores, quer amizades, quer sócios, quer patrões

que nunca tinhas realizado qualquer um dos teus sonhos

daqueles capazes de orientar toda uma vida

– não é preciso imaginar muito, isso é o habitual para a maioria

– porque razão não carregarias no botão?

 

            O renascido ficou à espera de uma resposta que já sabia que não viria. Deixou passar um bocado e continuou:

  

Carregarias então no botão?

Todo o teu organismo se revolta

e é bem saudável que assim seja

Mas nenhuma dessas razões que os homens buscam

se aguentariam à menor questionação

Significa que não há uma razão?

A razão é o aqui e agora

não nenhuma transcendência de pacotilha

martelada para dizer um qualquer disparate que nos convém

Há que dizer é porque nos convém o disparate

 

Acordo ainda com os sonhos embrulhados na consciência

estou dormente por qualquer motivo inconsciente

ainda de olhos fechados

ouço os sons, até desagradáveis dos vizinhos

mas não é desagradável poder ouvi-los

abro os olhos e vejo a humidade a escurecer as paredes

o voo volteante de uma mosca

olho pela janela, para fora, vejo o azul do céu

o verde cambiante das mil folhas da árvore em frente

estendo o braço e a solidez da parede resiste-me

o meu corpo pesa sobre a cama

e eu espreguiço-lhe o peso para longe

cada meu gesto, minha sensação, meu pensamento

até a dor que me surge atrás nas costas

é fruído no prazer de só estar vivo

Saio, encontro um outro que cheira mal

procuro fugir-lhe, encontrar um rosto mais apelativo

encontro ou não encontro, falo, ando, gesticulo

outros habitam constantemente o mundo

abrem portas que não dão para lado algum

e eu saúdo-as, evito-as, persigo-as, falo

digo algo para quem me não compreenderá

mas que me ouviu e eu lá sigo

sigo para onde, para quê?

sigo para ver mais azul e ouvir mais som

e gesticular mais e falar mais

e por esse puro estar vivo só por estar vivo

é que eu não carrego no botão

Estou deprimido, sem qualquer desejo de viver

acabo por decidir o suicídio, mas primeiro dão-me o botão

Porque não carregá-lo agora?

Porque esses outros que me habitavam o existir

poderão, já que eu já não posso, também fruir

E se eu não encontrar aqui uma razão

nada impedirá que eu carregue o botão

 

Pelo contrário, são os fantasmas que assombram

a mente humana com esperanças e expetativas

que são capazes de criar uma alienação tal

deste estar vivo numa alucinada dimensão visada

– além religioso, os amanhãs que cantam na sociedade sem classes   

a grandiosa destinação nacional, a distópica utopia técnica –

que faça esquecer a elementar razão para querer estar vivo

e aí, para a realização do fantasma ou por frustração

é sempre possível que se carregue o botão

 

Não falta gente a dizer que é preciso uma nova ordem

para evitar que isso aconteça

Não, é preciso é convencer os homens

que qualquer nova ordem será um novo pesadelo

e que se deve fazer tudo para desacreditar esses fantasmas

e só acreditar na fruição do mundo com os outros

Provocará isso pobreza, deixaremos de lutar pelo crescimento

Ótimo, não são precisos grandes gastos para cheirar o campo

para comermos apenas o que precisamos

e para falarmos com um amigo ou só um conhecido

Seria boa forma de diminuir a agressão planetária

Zelar pelo pouco é bem mais importante

que arquitetar fantásticos horizontes

e se morrermos de fome, morreremos

até o fim poderemos olhar as cores, inspirarmos e falar

sentir a brisa, ouvir o mar, fechar os olhos e sonhar

Sempre seria melhor que caminhar para o abismo

provocado pela fantasmática ansiedade e egoísmo

que apenas procura transformar tudo em consumo

e espera, depois, que um milagre nos forneça um rumo

 

            O jovem, aliviado por desabafar e aliviado pelas palavras do renascido, não reparou que ele não tinha posto de parte o objeto do seu medo. Tranquilizado, foi embora habitado por estranha e nova serenidade. Na verdade, não precisava de temer o cogumelo, não sobreviveria o suficiente para ser sua vítima.


© Joaquim Lúcio, ressurreição

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Notas técnicas ou desnecessárias

     Repararão alguns que dispensei sempre vírgulas e pontos no final dos versos. Se um verso não é uma unidade rítmica, é o quê? Hoje, quase parece proibido considerá-lo dessa forma e faz-se questão de desconstruí-lo. Admito que possa ser uma apresentação gráfica e, por isso, mais ligada às artes plásticas que à música. Porém, em muitos casos, também não vejo onde está a expressão plástica. Logo, porque não a prosa? É notório que sou conservador, para não dizer reacionário ou obsoleto. Claro que se pode questionar se não seguir os modelos em voga porque sim, se não se conformar com a moda estabelecida já há muito, não será ser, de algum modo, rebelde… Para mim, o verso continua a ser uma unidade rítmica e, por vezes, nem na prosa a dispenso. Sê-lo-á de forma livre, em muitos casos, como em muita música contemporânea, mas não deixa de o ser. Daí, vírgulas e pontos me terem parecido, neste volume, sempre redundantes no final dos versos. Quanto ao meio, já dependerá da composição que me apeteceu. Aliás, se me apetecer, também a unidade rítmica terá exceções.


     Outra nota redundante, sobretudo tendo em conta o escrito quer no Jazigo, quer aqui, é a relativa ao meu nome. Joaquim Lúcio não é um pseudónimo, nem um heterónimo. É um criptónimo. Desde os 13 anos, influenciado pelas Confissões de Lúcio e por mais uma série de palermices místicas (relacionadas com a luz, claro), acrescentei ao meu nome um segundo nome próprio, Lúcio. A rubrica que adotei nessa mesma altura e que usei sistematicamente em tudo quanto é documento até hoje, contém um L corrido entre o J e o primeiro N. Assim, desde essa altura, mais ou menos secretamente, adotei esse nome, não como um heterónimo, mas como um nome próprio. Quando resolvi tornar públicos os meus antigos textos no Jazigo, adotei esse nome não por qualquer razão honrosa, por puro e simples medo. Tive medo que os meus textos mais arrojados, obscenos ou radicais me trouxessem problemas na vida profissional. A pouco e pouco, descansei, por dois motivos: quase ninguém lê nada e, para que os censores chegassem aos meus textos, seria preciso ganhar notoriedade e, ainda assim, seria preciso que alguém os sinalizasse; além disso, a minha própria situação familiar permitiu-me passar a correr riscos sem temer por outros. Ao fim e ao cabo, o criptónimo tornou-se inútil, mas já o tinha estabelecido e não havia razões para o alterar. Em alguns textos ortónimos, refiro-me a mim próprio na 3ª pessoa como Lúcio. Isso apenas aconteceu não por vaidade sem nexo, mas por ainda manter, nessa altura, algum temor e pretender poder operar algum recuo em caso de ataque pessoal. Quase certamente, isso já não seria possível, mas, na altura, tranquilizava-me um pouco.

     Quanto ao assunto de fundo, não vejo qualquer sentido quer na heteronomia, quer até na pseudonomia. Considero a heteronomia uma extensão da ilusão das identidades já denunciada no Jazigo. Claro que se podem criar personagens, tal como ocorre neste mesmo livro, e é isso mesmo a que corresponde cada identidade. Não se trata de uma substância, mas de uma construção objetal relativa a si próprio, fictícia em geral aliás e não apenas nos heterónimos, que se situa ao nível da representação e não ao nível do representar. A consciência como consciência sempre de qualquer coisa, pode fazer de si própria um objeto, mas é uma ilusão grosseira julgar que há um nível superior de reflexão que permite o acesso à natureza da consciência tal como ela é para si. Talvez se possa admitir uma consciência imediata de si, mas, se não se quiser cair na ilusão substancialista que cria apenas uma ficção que não corresponde a nada que não talvez os desejos e medos em relação a si, essa consciência será, na melhor das hipóteses, adverbial, acompanhando as coisas projetadas e caracterizadas, acompanhando os processos verbais, um mero acompanhamento incapaz e impotente de tudo quanto está a acontecer na própria mente. A minha rejeição da heteronomia advém apenas de ela querer dar nomes e quase rostos fixos, quando o eu é constantemente outro para si próprio, podendo cada poema, cada verso, cada palavra ter uma assinatura diversa. De facto, a heteronomia é uma forma de querer estancar a terrível e potencialmente infinita fragmentação do eu, é uma forma de se proteger contra a loucura, uma forma de congelar o fluir múltiplo em algumas configurações, uma forma de manter a loucura fora de si, um exorcismo como aquele que foi feito primordialmente pela humanidade ao colocar fora de si os seus delírios, os seus desejos, os seus medos, tornando-os referência exterior sagrada, os mitos. Eu, seja lá o que isso for, assumo como própria essa potencialmente infinita fragmentação.

 

      Por fim, tal como no Jazigo, o sinal ► indica que a estrofe não acaba na presente página. Quanto a outras questões, como a origem do meu termo “gente”, já foram esclarecidas em muitos outros textos, mas posso referir tratar-se de uma tradução livre do das Man heideggeriano. Quanto a outros termos menos familiares, ou acabam por se compreender por si, ou qualquer razoável dicionário europeu de filosofia os esclarece.


© Joaquim Lúcio, ressurreição

Sinopse enviada às editoras

 A obra desenvolve-se a partir da morte do poeta, já retratada em O Jazigo do Poeta, não apenas como ocorrência pessoal, mas como caracterização da época. Porém, a partir de certa altura, introduz um artifício, a ressurreição do poeta sob forma espectral, como um reflexo longínquo do dizer original, anterior à especificação da linguagem em discurso poético, filosófico, político, religioso, profético, científico, etc. A figura do renascido diz apenas, não diz no seio de um registo codificado e especializado, opõe-se mesmo a essa degradação do dizer numa arrumação técnica. A partir do momento em que renasce, a obra passa a ter uma componente narrativa e até mesmo, num ou noutro momento, dramática. É, aliás, qualificada como ficção poética trágica. Por vezes, poeta, por vezes, profeta, por vezes, proclamador, por vezes, místico, por vezes, denunciador, por vezes, filósofo, por vezes, personagem narrativa, por vezes, vários deles ou todos eles, o renascido não se encontra limitado por qualquer dessas figuras. O próprio verso se pode tornar versículo e este a mais banal proposição denotativa. O dizer autodetermina‑se, busca ser contundente, atingir com precisão o que procura dizer, afastando-se da dissolução na metáfora infinita, onde tudo pode ser tudo e, logo, acaba por não dizer nada. O texto explora as temáticas, já abordadas na anterior obra, da cidade e do subúrbio, do próprio e do outro, da pessoa e da gente, do real e das mistificações, do mundo e do caos, do meio original e do meio coletivo, da liberdade e da determinação, da terra e da possibilidade, além de outras temáticas pontuais e sugestões por vezes apenas afloradas como mistérios ou cruzadas com o tratamento das temáticas referidas. Se algumas das teses são reiteradas quase obsessivamente, é porque são fundamentais para a estruturação do conflito que se vai desenvolver. E o resultado é exatamente o enunciado desde o início…

© Joaquim Lúcio

domingo, 11 de setembro de 2022

Prefácio

      O poeta morreu em mim aos vinte e tal anos. Melhor, o poeta foi morrendo em mim aos vinte e tal anos. Andou a sucumbir durante anos e faleceu, aparentemente de vez, quanto atingi os 30. E, depois, o que vivi? Dir-se-ia que várias vidas, vários avatares. Dir-se-ia mal. O que vivi como professor, como marido, como pai, como jogador, como amante, como funcionário foi sempre tão-só e apenas a morte do poeta. Porém, já enquanto o poeta moribundo soçobrava, comecei a perceber que a morte do poeta não era uma mera contingente configuração da minha sobrevivência, uma mera ocorrência do percurso individual, para mim muito relevante, mas com pouco ou nenhum significado global, uma mera circunstância infeliz, mas apenas factual.

A morte do poeta é a configuração mesma desta época, uma época que reduziu toda a compreensão, toda a relação, todo o dizer à operatividade, ao cálculo, ao esqueleto, à armação, ao organigrama funcional. A unilateralidade do pensamento técnico, a unidimensionalidade da humanidade contemporânea, a imediatez da linguagem dos media, a transcendência esmagadora do mercado, o dogmatismo autocrático da tecnociência, assim como as suas imitações obscurantistas, desde as mais sérias e ideológicas pseudociências sociais e humanas à tagarelice ignorante e nauseante das ditas ciências ocultas, tudo realizava o velho sonho metafísico da superação das aparências do poeta. Mas a metafísica esquecera-se que tinha a mesma origem da poesia, que o puro dizer que emanava dos filósofos arcaicos quase perdidos era poético e que o poeta apenas residia junto da fonte de onde o seu próprio dizer provinha. Por isso, para realizar mais completamente a superação do poeta, havia que esquecer o próprio esquecimento, esquecer as raízes metafísicas da economia, técnica e ciência, fazer uso do olhar enviesado do nosso tempo capaz de não reconhecer as mais óbvias evidências e fingir a superação da própria metafísica. O mais absoluto domínio da metafísica exigiu a má-fé de não se reconhecer o seu caráter metafísico mais patente. A autocracia metafísica está presente nas teorias indiscutíveis da ciência que nem admitem ser chamadas teorias, nas leis invisíveis do mercado, no mundo virtual planetário e em todo o predomínio, não apenas político, mas intelectual, da tecnocracia. Como toda a autocracia, deixa de querer questionações, problematizações, até argumentações pelo menos complexas. Há que reduzir tudo à imediatez da fórmula, do provado, da palavra de ordem, do slogan, do meme. E, por todo o lado, como um espetro constante, a persistente assombração da morte do poeta.

Não que esta época não tenha produzido sucedâneos de poetas, produtos como outros que se dizem exatamente o contrário do que são. Sempre que hoje se ouça falar em espírito crítico, em autonomia, em criatividade, até em filosofia, pode-se estar certo de se estar a procurar garantir exatamente o contrário, conformismo, dogmatismo, imitação e cálculo operativo. São produtos técnicos que visam fornecer a ilusão que se está a realizar, porventura com a maior perfeição de sempre, aquilo mesmo que se assassinou.[1] O mesmo acontece com os poetas e os artistas em geral. Sendo a poesia o dizer original, como é possível que se afirme poeta quem não diz rigorosamente nada, quem reduza a sua produção a uma estéril vacuidade eufónica, computando palavras ao calhas? Isso só é possível num ambiente que reduziu a arte plástica à especulação arbitrária do mercado e deixa a música entre a miséria andrajosa ou os sons grosseiros e os ritmos dementes da repetição obsessiva dos enlatados ditos populares. O caos da técnica reservou um recanto para essas aberrações que permanecem de outros tempos, um pouco como as antigas tendas dos horrores, mas sem sequer terem capacidade de construir um marginal discurso alternativo. Para ser um discurso alternativo, era preciso que se dissesse alguma coisa de alguma forma. Ora, esse é o objetivo desses sucedâneos, objetivo cuidadosamente cultivado por editoras, por galerias, por museus e pelo mercado, apresentar um produto que possa satisfazer o caos hebefrénico de alguns seres perturbados, enquanto mostra para todos os outros o ridículo e o absurdo do discurso poético, do discurso pretensioso de e sobre a arte, um “blábláblá” ou um “patoá” sem nexo que mais evidenciam a omnipotência exclusiva da operatividade técnica. Os artistas quiseram no passado a autonomia em relação à metafísica, à ética, à política, à ciência, à técnica, até mesmo à estética, para desembocarem na mais completa irrelevância, um entretenimento de horrores que não tem qualquer possibilidade de ter qualquer poder na distopia técnica que se criou e se está a criar. É por isso que tanto o mercado zela para que a arte e, em particular, a poesia não digam nada, muito embora possam sempre parecer estar a dizer tudo, num sincretismo holístico reduzido à completa liberdade do vazio de todo e qualquer sentido. É bom para o mundo técnico do mercado que não haja qualquer verdadeiro discurso alternativo. Quem sabe até onde um discurso alternativo poderia contestar o seu domínio? Quem sabe o que um dizer verdadeiramente original poderia relembrar?

Claro que, ao fim de dois séculos de declarações de morte disto e daquilo, já ninguém tem a menor reação a mais uma. Morte da metafísica, da filosofia, do próprio homem, da história, do ser e tantas outras são tantas outras declarações tonitruantes que tiveram, na sua altura, algum impacto, para se acabarem por revelar aquilo que sempre foram, vacuidades sem significado que não o da vaidade dos proclamadores. É possível que alguma dessas realidades venha a morrer ou a ser reconfigurada de tal forma que o produto posterior só tenha o nome em comum com a realidade anterior. Mas não é claro que isso já tenha ocorrido em qualquer dessas áreas ou conceitos. A metafísica goza um certo renascimento até na filosofia analítica, o homem que sofre a reconfiguração técnica ainda subsiste com dificuldade, embora com cada vez menor noção de si próprio, a história surpreende sempre os seus cangalheiros e o ser apenas acabou segundo a história que dele alguém contou, ele próprio apenas mais um momento da história do ser. Em que é diversa a morte do poeta? Sinceramente, espero que não seja diversa, mas é. A atual omnipotência da mentalidade técnica pode ser acomodada em versões técnicas da filosofia, da metafísica, do homem, da história e do ser, muito embora a técnica moderna não seja mais que a realização plena de um tipo de metafísica. Mas não há possibilidade de um acomodamento técnico moderno do poeta. Um acomodamento técnico do poeta seria um não poeta. Pior ainda, qualquer renascimento do poeta parece impossível. Um poeta poderá ainda existir, não pode é já ter voz. E quando a voz de algum se ouve ou vem do passado através do texto escrito consagrado, é transformada num lugar comum repetido sem compreensão, tanto mais repetido quanto mais o poeta se tiver tornado icónico, num vácuo absurdo próprio de tudo quanto é dito pela gente. Se algum verdadeiro poeta conseguir fazer ouvir a sua voz, ainda teria de sobreviver a essa segunda morte de se tornar icónico e isso é impossível nesta época. Tudo é consumido, tudo é operado, tudo é calculado e não há lugar para a habitação do homem na terra de que falava o poeta. A morte do poeta domina, pois, esta época, mesmo que algum poeta subsista. Ele não terá voz e, se a tiver, será rapidamente deformada na sua antítese.

Como pode sequer fazer sentido falar de ressurreição? Não faz, mas também não fazia a do passado. O ressurreto do passado não veio dizer grande coisa após a morte. Isso é, aliás, a maior prova de se tratar de um postiço, um cenário, algo extrínseco à existência em causa. Para quê voltar se nada de novo tinha a dizer? A sua ressurreição foi entendida pelos crentes apenas como uma forma de fornecer uma promessa de vida eterna. E assim mais uma ilusão foi reforçada, sem que isso trouxesse a menor vantagem aos iludidos. Qualquer ilusão é prejudicial e a história tresloucada da humanidade é, no fundamental, a história dessas ilusões. A única redenção possível seria a libertação de todas as ilusões. É possível? Não. Pensar tal possibilidade é como pensar a possibilidade de todos os toxicodependentes se libertarem das drogas. Aliás, nem é uma analogia, é apenas parte desse universo de ilusões que desorienta a humanidade para o caos. Porém, o ressurreto do passado também prometia a vida eterna apenas para quem seguisse os seus passos. Alguém os seguiu? Algum dos seus seguidores cumpriu o ideal expresso no sermão da montanha? Sobretudo, depois de o tornar icónico, o importante era adorá-lo, repetir gestos rituais, até se martirizar, mas não realizar esse ideal. Também ele sofreu uma segunda morte ao tornar-se icónico. Poderá um ressurreto que procure libertar pessoas das ilusões ter melhor sorte? Certamente que não. O melhor que lhe poderia acontecer era não ter seguidores. Sempre se pouparia, assim, a essa morte. Mas é próprio da natureza humana, talvez da própria vida, tentar impossíveis. E este é o relato de uma dessas tentativas, inevitavelmente destinada ao malogro, ou pior ainda, a significar exatamente o inverso do intencionado.

Qual o objetivo então? Nenhum. O objetivo de tentar é tentar. Neste caso, nem se trata de fazer renascer o poeta. Também o antigo renascido vinha diferente, deixara de reagir da mesma forma, parecia apenas uma imagem assombrada da antiga vida e do recente sofrimento. A promessa que então trazia parecia distante e desfocada, não concreta e humana, simultaneamente transcendente e espetral, já com os decretos eternos na boca e a omnipotência de um penetrante e sobrenatural olhar. Quem, o quê renascerá? Não um poeta, não um profeta, não um aedo – antes, uma reminiscência deles todos e muitos outros, uma voz vinda dos confins da terra onde tinha sido depositada, para cumprir os seus decretos, um eco de uma outra época em que as palavras ainda eram embarcações de sentido, ainda encantavam almas que ainda existiam, ainda derramavam sensações em quem as escutava, um ressoar subliminar do tanto que ficou esquecido, enterrado, deformado, desfigurado até ao ponto de não ser mais reconhecível.

Vivi a morte do poeta na minha carne, percorrendo da angústia ao desespero toda a escala do excesso e exaustão de sentido. Vivi a morte do poeta até por ter sobrevivido como morte do poeta. Vivi a morte do poeta na agonia de subsistir no tempo público, no tempo de horários e calendários e planificações, incapaz da projeção que fazia do poeta temporalidade num ser para a morte assumido na mais plena das existências. Vivi e vivo a morte do poeta e sou incapaz da sua ressurreição. A sua ressurreição emergiu da evocação necessária do passado do espetro do poeta para poder completar o seu jazigo. Mas a evocação conseguiu sobreviver ao objetivo para que foi executado o feitiço. Paira agora em todos os cenários da minha mente, mais assombração que nunca, maldição ou premonição, prenúncio não sei de que prodígio, de que aberração, de que portento. Nada mais posso fazer que observar o fenómeno a se desenrolar. Talvez o seu desdobrar traga desvelamento, revelação, advento, talvez se encerre na mais impotente frustração, talvez permita desfazer mais algumas ilusões. Talvez traga só mais incerteza, talvez seja apenas um talvez, talvez apenas anuncie quem possa fazer renascer de vez. Insondável será mesmo após ter ocorrido. E eu só aqui estarei para relatar, externamente, o sucedido. O olhar não se olha a si mesmo. Eu, a morte do poeta, serei mero olhar após a ressurreição. E o que verei ser-me-á estranho.


© Joaquim Lúcio, ressurreição



[1] O truque nem sequer é novo, já foi muitas vezes levado a cabo. Por mero exemplo, a apologética cristã ainda anterior à patrística apresentava o cristianismo como realização da filosofia.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Terra e água

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     Alguns dos jovens que o procuravam, ainda que excluídos das seitas e grupos reconhecidos pela gente, sentiram necessidade de alguma diversão. Começava a estar calor, nada de especialmente sufocante, mas o suficiente para poder usufruir das praias. Convenceram os mais recalcitrantes a fazerem uma saída e acabaram por ir tentar fazer o mesmo com o renascido. Este lembrava-se do absurdo das multidões a deixarem as suas cidades, vilas e aldeias para se dirigirem para a língua de areia junto à costa, onde se concentravam, por vezes, num cenário dantesco, a grelhar ao sol, sem espaço quase para se deitarem, para chegar à água ou se movimentarem. Mesmo no interior, recordava-se de cenários análogos e, em ambos os casos, de toda a tensão que percorria ida e vinda e a luta por lugar para o transporte, na praia ou em qualquer das instalações de apoio, balneários, cafés, etc. Não estava nada interessado em acorrer para o meio de tal horda e rejeitou a oferta. Porém, os jovens não desistiram e acabaram por o convencer visto irem para uma praia com acessos restringidos a transportes públicos de que, aliás, se lembrava. Mas, na verdade, outra recordação o prendeu. Nas idas à praia, havia um momento de libertação que não podia esquecer quando nadava para longe da massa e ficava à distância a voltear sem destino dentro de água, como se nada houvesse a visar senão o gozo de ali estar com a frescura líquida e os seus movimentos fluídos. Na verdade, foi a água e não a insistência dos jovens que o atraiu para a estância balnear. Pela água, aprofundou o seu pecado…

     Após chegar, foi observando as entradas na água das gentes que por ali estavam e, ao ser interpelado pelos jovens que o acompanhavam, acabou por declarar:

 

Os corpos bípedes vagueiam desesperados pela terra

já sem a perceber, sem a sentir, sem a escutar

Os corpos amputados e esquecidos que a cidade encerra

já nem sentem no chão que pisam o seu lar

 

Por isso, as almas penadas que os habitam

e lhes dão a ilusão de vida e destino e ação

anseiam no lago ou mar que aqui ali visitam

um símbolo do rumor de uma recordação

 

Podem vir rancorosos uns com os outros

cultivar os ódios que as relações permitem

procurar provocar obscenidades em encontros

 

que ao penetrar a água por instantes se redimem

a frescura lhes dissolve instantânea o egoísmo

e a fluidez os abençoa com o sacramento do batismo

 

*

 

Um tal refrigério de tal forma inexplicável

tem de ter uma razão, ao menos um motivo

para trazer ao mais mesquinho terrestre o inefável

para fazê-lo comungar, inconsciente, com o vivo

 

O homem perdeu-se da própria terra sobre a qual depõe os pés

e só o lembra sob a forma de uma infinita eterna mágoa

que procura aliviar desesperado com as fés

mas de que só alcança a redenção dentro de água

 

E a água ao trazer momentâneo esquecimento

permite vaga reminiscência do mais fundo que olvidou

não como imagem, mas como gemido, como lamento

 

­viúva desfeita em pranto, pai de filho que não voltou

a alma do homem é do corpo uma assombração

feita de água, lembrança vaga, dor sem reparação

 

*

 

Porque anseia o senhor da terra pela água?

para saciar a sede, como fonte de prazer e vida?

mas porque não lhe basta abrir uma torneira

ou bebê-la por garrafa em qualquer saída?

 

O senhor da terra domina-a, tortura-a, consome-a

mas não lhe conhece o sentido, a origem, o segredo

o único que o podia proteger de frustração, loucura

por sua liberdade desembocar em escravatura e degredo

 

Projetando uma aspiração incondicionada e desmedida

libertada de sujeição à natureza, libertada do trabalho

acaba sempre numa mesquinhez triste e ressentida

 

carcaça esvaziada sem valor sequer para o talho

– de tal depreciação tenta refugiar-se em rio ou mar

imensidão sem limites, sem distinção, sem par

 

*

 

Poderá se compensar numa piscina ou até numa banheira

mas sua longa amnésica falta é a do enleio infinito

não lhe chega compra e venda, amizade companheira

não lhe chega tirania, não lhe chega amor, não lhe chega mito

 

No fervilhar do dia a dia, na ambição, na cobiça

na obsessão lúdica, na investigação, no espetáculo

quanto mais o estímulo o ameaça, seduz ou atiça

mais o homem o sente, veladamente, um obstáculo

 

A alma anseia, secretamente, de lago, rio ou mar

desaguar sem limites no ilimitado oceano

onde se poderá perder enfim para se realizar

 

realizar o seu sonho desmesurado e insano

que a apartou para sempre da pertença à terra

numa destruidora e interminável guerra

 

*

  

Perder-se nas correntes, nas ondas, tempestades

perder-se nos abismos, entre costas, longe delas

perder-se na pressão das maiores profundidades

perder-se de rotas e interesses de humanas caravelas

 

Diluir a alma na imensidão da água eternamente

até se esquecer de ter sido louca e humana

dispersar-se em vagas em gotas em partículas

ao sabor dos ditames da natureza soberana

 

e embrenhar-se nas areias, nas rochas e nas lamas

e ascender aos céus, pelas trombas e pelas nuvens

e regressar, por fim, à olvidada eterna morada

 

na borrasca, no nevoeiro, na chuvinha demorada

aspergindo o solo a erva a árvore o galho

com a bênção à terra agradecida do orvalho 

 

     Reparou, então, que alguns dos jovens tomavam notas do que dizia e o facto desagradou‑lhe. Por isso, calou-se e entrou na água, afastando-se para longe. A sua declaração, porém, ficou registada e passou a ser conhecida como os “5 sonetos da dissolução”. Se acaso o renascido teve sequer consciência de ter proferido sonetos, é algo que nunca se pôde apurar.


© Joaquim Lúcio, ressurreição, pp. 212-214

Adverso o verso

  Adverso o verso no reverso do diverso por incapaz de reduzir o díspar ao igual Parece pernicioso pior pérfido perverso à sentença da...