"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 29 de outubro de 2022

ressurreição

No subúrbio, ninguém tem nome. Se parece tê-lo, ao menos para alguns, em breve será esquecido, em breve nunca terá existido. O anonimato é a sua essência. Os seus habitantes têm rostos, mas ninguém os quer reconhecer; têm mãos, mas ninguém lhes reconhece o valor; têm sangue, mas só serve as manchetes quando criminal ou policialmente derramado. Deles depende toda a aparente vida da cidade, sem eles, nem as paredes dos privilégios se segurariam para ver nascer um outro dia – porém, são desprezados pelos abastados e poderosos até o ponto de nem terem consciência do desprezo. A vida é, para estes, só o que ocorre na metrópole, as relações estabelecidas entre gente reconhecida como pessoas pelo nome.

No caos dos privilégios, o nome parece essencial, cada qual já tem, ao nascer, identidade, carreira política, empresarial ou universitária, lugar por trás de um avental, editora, publicidade mediática, lugar de comentário televisivo, lisonja garantida nos eventos, o caminho aberto por ser filho de algo. Só no centro da urbe ou nos subúrbios do deleite se reconhece a existência e em lado algum a morte habita menos cada gesto, expressão, manha, pensamento ou dito recorrente, que no antro do luxo perdulário. Os que têm nome são o inimigo, o inimigo mortal nascido da anulação da massa imensa do subúrbio e estão em todos os partidos, em todos os sindicatos, em todas as igrejas, em todos os clubes, em todas as associações, em todas as “espiritualidades”, em todas as academias, em todas as agremiações, ao menos se tiverem algum porte, para garantir que só os que têm nome terão lugar em algum palanque. Este livro é dedicado aos que não têm nome e até os privilegiados serão nele despidos de nome. A possibilidade de pessoa não precisa de nome, precisa de ser a sua diferença, precisa de viver a sua vida, libertar-se do oceano asfixiante da manada, ser o rosto que se nega à massa do subúrbio. A pessoa é a sua diferença ou não é nada, não precisa de ornamentos e o nome tão distintivo dos privilegiados não passa da decoração com que se disfarça o vazio essencial.

Este livro não foi feito para agradar a ninguém. Se alguém que o lesse, o aceitasse de ponta a ponta, ficaria muito preocupado. Um dos principais objetivos é a denúncia de ilusões e o ser humano precisa de ilusões quase tanto quanto de alimento. Pode com facilidade e até prazer acusar e denunciar as dos outros, mas agarra-se às suas como se fosse questão da sua própria sobrevivência. Mas cada uma dessas ilusões é apenas uma forma de atormentar a mente, um vício, uma alucinação que, se não for um pesadelo imediato, sê-lo-á nas suas consequências. Tal como um toxicodependente, cada qual agarra-se a essas ilusões que lhe destroem cada vez mais a existência e que em nada lhe permitem lidar com o real, como se fossem mais relevantes que a própria vida. Daí o imperativo de as denunciar. Se o livro peca por algo em relação ao projetado, é por ter sido encurtado nessa denúncia, dado o porte que estava a alcançar.

Chegou a hora de desbravar novos caminhos. Boa parte desses caminhos passará pelo derrube, já iniciado neste livro, das minhas próprias derradeiras ilusões. Deixo a outros a fabricação de mistificações que as gentes deglutem famélicas de alienação. Para mim, reservo o olhar cru que já referia no meu primeiro livro ausência. E, porém, também o olhar cru pode ser um sonho, pode ser um pesadelo, pode ser alienação. A ressurreição pode ser morte, pode ser maldição, pode ser apenas um desvio para uma mais completa aniquilação. Poderá um sonho, um pesadelo, um delírio dizer algo que faça ver para além dos véus? Não será o destino, este destino, apenas nova mistificação? Não poderá uma mistificação ser uma manha do desvelamento? E renascer apenas o início de um novo velamento?

Este livro não foi feito para agradar a ninguém, nem sequer a mim próprio... Caminhará sozinho por seus desertos e será esquecido, como cada habitante do subúrbio. Na verdade, cada sujeito de si próprio tão convencido também só sobreviverá nos anais privilegiados para reter a ilusão de quanto foi importante o seu vazio... Os passos andam sempre sem destino, o caminho só a si mesmo se caminha, a procura só a si própria se encontra...

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