"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Há dias maiores no armário da solidão

 

Há dias maiores no armário da solidão

dias que infletem o tempo e o dobram

dias com o peso de uma outra dimensão

dias que encerram dias que soçobram

 

A solidão parece uma linha contínua

de angústia ou tédio ou desalento

só a interação social parecendo descontínua

variando pelas relações e entretenimento

 

Mas não é assim antes próximo do inverso

Dias há de indiferença e até serenidade

dias de nervosismo aborrecimento até de euforia

dias de empenho energia dias de ansiedade

 

E há dias de chumbo derretido a correr nas veias

dias em que a duração emperra asfixia a fluidez

dias em que tudo no peito se contrai oprime nega

dias em que se não consegue respirar mais uma vez

 

E nesses dias deixa de existir futuro

o tempo inverte a sua direção

nada mais se espera desespero puro

e só para o passado se mantém a projeção

 

Mas é seu lançar-se apenas negativo

movido pelos vapores mais ressentidos

olhando de novo tudo o que passou

e todos os momentos todos os sentidos

 

Pode-se lentamente cultivar rancor

e isso longamente sustentar a duração

até já nada ter no peito senão dor

e restar na vida petrificação

 

Há dias maiores no armário da solidão

dias em que a vida acaba e porém se dura

­– começa a indiferença ao que se passe ou não

e a inércia insuportável e constante da tortura

do passar espaçado e rangente dos segundos

que sempre acompanhou os moribundos

 

E acabará por ser tão grande o hábito de sofrer

que já nem se esperará enfim morrer...


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. IV, petrificação, pp. 80-81.

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