"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 8 de junho de 2024

No tempo em que ainda escrevíamos poemas


No tempo em que ainda escrevíamos poemas

(ontem só e, porém, um abismo intransponível

entre o que houve e o que ficou),

no tempo em que o tempo corria ao contrário

e em que nada era redutível a um “passou, passou”,

 

andávamos juntos pelas ruas a caçar as madrugadas

e, em cada coisa, momento, situação,

emergíamos festa ou tragédia, ocasos, alvoradas

e movia-nos, mesmo sem objeto, a paixão.

 

Nesse tempo, os poemas existiam em cada esquina, em cada beco,

e nasciam por entre baldes de lixo e excrementos, 

por entre caracóis e imperiais, por entre putas e porrada.

Éramos guiados por destinos terríveis em radicais experimentos,

deuses manobravam nossos passos e cada passo era uma palavra revelada.

 

Fosse o que fosse, fazia fremir os capilares,

abria os poros para uma inspiração global –

incorporávamos os cheiros e vapores das tascas e dos bares

como incenso que nos enviasse para dimensão transcendental

e cavalgávamos as estrelas endoidecidas

por uma embriaguez que nos lançava para lá das nossas vidas.

 

Fazíamos arder condimentadamente as nossas bocas

e regávamos o incêndio com tonéis de vinho,

encontrando no deambular insano

sempre um qualquer sentido, um qualquer caminho

– os olhos incendiavam-se de brilho algo mais que humano

e os lábios proclamavam mistérios de um passado arcano.

 

O peito expandia-se em infindos horizontes

enquanto galgávamos de vale a vale, de rio a rio,

devesas, outeiros, colinas, montes,

cidade e campo, urbano, suburbano ou bravio,

o espaço que havia entre a situação e nossos sonhos,

ampliando-se ao destino o nosso desafio.

 

Mesmo exangues, no fim das noites mais brutais,

a devastação era em nós beleza

e a fronte com que defrontávamos ideais

era altiva, era aberta, era nobreza.

 

Como foi possível tornarmo-nos sérios e funcionais,

tornarmo-nos baços, vulgares, anónimos, maritais,

tornarmo-nos o reverso plebeu do que éramos quando

nem em relação a nós mesmos suportávamos ser iguais?

 

Em que rua demos a volta errada

para que eu possa voltar a refazê-la?

Qual foi a esquina que foi dobrada,

o que nos distraiu de pressenti-la, vê-la?

 

Seriam as hormonas, os neurotransmissores

lançados pelos ciclos orgânicos juvenis,

que deixámos de sentir como um presságio

por termos começado a ficar enfim senis?

 

Ou veio o desencanto do cansaço

que gestava indetetado nesses gestos

que pensávamos, no anoitecer embriagado,

eternos, apesar de mil e um sinais funestos?

 

Brindávamos, na verdade, à deterioração

com o mesmo entusiasmo que à alegria e ao prazer

e víamo-nos consagrados tanto na emoção

como nos excessos transtornados até desfalecer.

  

E ficou sempre um travo amargo

de termos ficado à beira de algo fundamental perceber

porque estávamos simplesmente lançados

sem um para quê preciso que nós ou alguém pudesse por fim entender.

 

Manifestações puras de força em excesso,

estávamos condenados à sua dispersão

e apenas surpreende quanta força foi desperdiçada

em tantos momentos de vazia transgressão.

 

E, porém, fere a recordação da voracidade

com que vivíamos a esbanjar energia aos quatro ventos,

não sei se da juventude, se da intensidade

de existir pleno quer nos prazeres, quer nos sofrimentos.

 

Olhar para o que hoje somos mete dó,

como um soldado amputado a sonhar façanhas,

um garanhão falicamente diminuído a desejar contornos,

um atleta ansiando recordes afogado em banhas,

uma antiga diva ocultando as rugas com tintas e adornos...

 

Assim acabámos, acomodados e burgueses,

já sem projetarmos tempo, tão-só durando,

segundos, minutos, horas, dias, meses,

anos de inércia e labores e deveres arrastando

a insuportabilidade de se ir aguentando...

 

O olhar vazio deixa o passado lá para trás,

cada qual pode apenas o que ainda é capaz... 


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, vol. III, terra, 1ª ed., 2019; 3ª ed., KDP, pp. 302-304. 

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