No tempo em que ainda escrevíamos poemas
(ontem só e,
porém, um abismo intransponível
entre o que
houve e o que ficou),
no tempo em
que o tempo corria ao contrário
e em que
nada era redutível a um “passou, passou”,
andávamos
juntos pelas ruas a caçar as madrugadas
e, em cada
coisa, momento, situação,
emergíamos
festa ou tragédia, ocasos, alvoradas
e movia-nos,
mesmo sem objeto, a paixão.
Nesse tempo, os poemas existiam
em cada esquina, em cada beco,
e nasciam
por entre baldes de lixo e excrementos,
por entre
caracóis e imperiais, por entre putas e porrada.
Éramos guiados por destinos
terríveis em radicais experimentos,
deuses manobravam nossos passos e
cada passo era uma palavra revelada.
Fosse o que
fosse, fazia fremir os capilares,
abria os
poros para uma inspiração global –
incorporávamos
os cheiros e vapores das tascas e dos bares
como incenso
que nos enviasse para dimensão transcendental
e
cavalgávamos as estrelas endoidecidas
por uma
embriaguez que nos lançava para lá das nossas vidas.
Fazíamos
arder condimentadamente as nossas bocas
e regávamos
o incêndio com tonéis de vinho,
encontrando
no deambular insano
sempre um
qualquer sentido, um qualquer caminho
– os olhos
incendiavam-se de brilho algo mais que humano
e os lábios
proclamavam mistérios de um passado arcano.
O peito
expandia-se em infindos horizontes
enquanto
galgávamos de vale a vale, de rio a rio,
devesas,
outeiros, colinas, montes,
cidade e
campo, urbano, suburbano ou bravio,
o espaço que
havia entre a situação e nossos sonhos,
ampliando-se
ao destino o nosso desafio.
Mesmo
exangues, no fim das noites mais brutais,
a devastação
era em nós beleza
e a fronte
com que defrontávamos ideais
era altiva,
era aberta, era nobreza.
Como foi
possível tornarmo-nos sérios e funcionais,
tornarmo-nos
baços, vulgares, anónimos, maritais,
tornarmo-nos
o reverso plebeu do que éramos quando
nem em
relação a nós mesmos suportávamos ser iguais?
Em que rua
demos a volta errada
para que eu
possa voltar a refazê-la?
Qual foi a
esquina que foi dobrada,
o que nos
distraiu de pressenti-la, vê-la?
Seriam as
hormonas, os neurotransmissores
lançados
pelos ciclos orgânicos juvenis,
que deixámos
de sentir como um presságio
por termos
começado a ficar enfim senis?
Ou veio o
desencanto do cansaço
que gestava
indetetado nesses gestos
que
pensávamos, no anoitecer embriagado,
eternos,
apesar de mil e um sinais funestos?
Brindávamos,
na verdade, à deterioração
com o mesmo
entusiasmo que à alegria e ao prazer
e víamo-nos
consagrados tanto na emoção
como nos
excessos transtornados até desfalecer.
E ficou
sempre um travo amargo
de termos
ficado à beira de algo fundamental perceber
porque
estávamos simplesmente lançados
sem um para quê preciso que nós
ou alguém pudesse por fim entender.
Manifestações
puras de força em excesso,
estávamos
condenados à sua dispersão
e apenas
surpreende quanta força foi desperdiçada
em tantos momentos
de vazia transgressão.
E, porém,
fere a recordação da voracidade
com que
vivíamos a esbanjar energia aos quatro ventos,
não sei se
da juventude, se da intensidade
de existir
pleno quer nos prazeres, quer nos sofrimentos.
Olhar para o
que hoje somos mete dó,
como um
soldado amputado a sonhar façanhas,
um garanhão
falicamente diminuído a desejar contornos,
um atleta
ansiando recordes afogado em banhas,
uma antiga
diva ocultando as rugas com tintas e adornos...
Assim
acabámos, acomodados e burgueses,
já sem
projetarmos tempo, tão-só durando,
segundos,
minutos, horas, dias, meses,
anos de
inércia e labores e deveres arrastando
a
insuportabilidade de se ir aguentando...
O olhar
vazio deixa o passado lá para trás,
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