"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

domingo, 6 de outubro de 2024

Adverso o verso

 

Adverso o verso no reverso do diverso

por incapaz de reduzir o díspar ao igual

Parece pernicioso pior pérfido perverso

à sentença das tábuas da lei do habitual

 

Desconstrui-lo e/ou torná-lo um falar à toa

convém às colossais potências da conformidade

Se a arquitetura do poema se esboroa

mais fácil condescender com sua insanidade

 

Houve tempos em que o verso infligia e magoava

que seduzia e deslumbrava que suave acariciava

houve tempos em que sua denúncia incomodava

 

Hoje o poema foi tornado mais que irrelevante

burguesmente vivenciando fragmentário o instante

deixando a praça livre para o discurso dominante

 

*

 

Mistura-se o peido da criada com o salpicão fumado

a tia solteirona com o casaco da infância

a leitura de um autor com o cheiro de um sovaco

o bordado da priminha com a depressão burguesa

 

tudo sem qualquer nexo senão a vida privilegiada

tão privilegiada quanto a dos deuses que entretinham

instante a instante fragmentariamente a eternidade

desejando alcançar até a mortalidade que não tinham

 

Porque é que o desconexo se estiver em verso

dá a impressão de subtileza e profundidade?

Porque é que o banal se estiver disperso

 

já é sinal de requinte e complexidade?

Porque é que disposto em verso o disparate

tem garantida publicação e lugar no escaparate?

 

*

 

Burgueses não somos nós todos desde pequenos

o universo não se tornou um paroxismo de privilégio

Tão-pouco os poemas são burgueses ou até menos

por se ter o destino garantido como dissipador régio

 

O distintivo da dita arte burguesa é ter de arranjar

alguma coisa arbitrária para a obra que se quer fazer

Importa o estilo importa a corrente importa o nome

por se não ter nada ao certo à partida para dizer

 

Os intocáveis inexistentes na cultura da lisonja burguesa

fazem obras por julgarem importante o que têm a dizer

e é isso que lhes fecha a porta e não a falta de subtileza

 

Incomoda ao inane refinamento o atrevimento de oferecer

algo que provoque precisamente o sentir e o pensar

em vez da imponderabilidade de não se sabe o quê significar 

 

*

 

Interessa à ordem de classes dominante

que só se leve a sério o discurso do negócio

do processo técnico jurídico burocrático

do político utilitarista e pragmático

 

Despejar a possibilidade de discurso alternativo

numa elite decadente e cacofónica

inteiramente virada para o umbigo

e para os elogios mútuos que proferem

 

é ótimo para reduzir a alternativa à aberração

similar às exibidas no passado pelas feiras

destinada a embasbacar papalvos

 

incapazes de extrair daí o mínimo sentido

- e claro simultaneamente silenciar

toda a remota hipótese de alguém falar

 

*

 

Neste triste ocaso da história humana

que festeja o triunfo da distopia técnica

quanto mais vaidosamente se ufana

o individual em ostentação cénica

 

mais a voz se cala de dizer e de falar

reduzida à função de comunicar

segundo os padrões gerais do artificial

que extirpam todo o possível pessoal

 

Ao majestoso espetáculo mediático

contrapõe-se só a risível exibição

do burguês desocupado errático

 

que sem nada a dizer escreve à toa

e transforma a voz em projetor pneumático

flatus vocis dos sem sentido que profere

 

*

 

O baboso burguês balbuciador de baboseiras

nasceu para não ser levado a sério

e evidenciar a vacuidade da vaidade das peneiras

que se oferecem como alternativa ao império

 

Quanto mais se edita pavoneia bem relacionado

mais confisca a possibilidade do discurso

impedindo que a palavra possa vir a ter significado

e garantindo que o triunfo maquinal siga seu curso

 

É altura de escutar a orgânica doente

deixar a terra esbanjar de novo o fruto

fazer da plebe renascer o desafio urgente

 

Está em marcha redução do humano ao bruto

por vitória definitiva do eletrónico cativeiro

Fatídico e final este é o ensejo derradeiro

*

 

Não há margem para recuperar de uma derrota

não há lugar já para tentar de novo mais adiante

Ou do solo perceção palavra poesia a planta brota

ou só restará o deserto do inorgânico transplante

 

Ao capturar a possibilidade de discurso para nada

comete-se o maior dos crimes contra a humanidade

pior que campos de extermínio a cada volta da estrada

pior que plantação planetária fúngica de radioatividade

 

Há que arrancar das garras do soprador de contrafação

o monopólio da alternativa voz e escrita e edição

conceder uma remota hipótese do poeta florescer

 

A morte do poeta é o triunfo do operativo inumano

a substituição da vida por simulacro sempre a crescer

submersão do mundo no pesadelo global urbano

 

e nem uma palavra não funcional para dizer

 

© Joaquim Lúcio, 8/1/24



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