Horas de celebrações passadas espicaçam a
chegada dos olímpicos
a finalidade do desporto, talvez da vida, simbolizada
nesta consagração
Mas rapidamente se é possuído por aborrecimento
até à náusea
sem mesmo a inércia já conseguir suportar tal
sucessão
Os festejos, as expressões, os depoimentos são sempre
os mesmos
por todo o lado, em qualquer tempo, em qualquer
modalidade ou área
Ver uma celebração de vitória é o mesmo que ver
todas
ver uns festejos de militantes, adeptos, fãs é
o mesmo que os ver de outros
Na vitória, onde se supõe escorrer alegria
espontânea do individual
só se vê, afinal, a subsunção da diferença ao
mais estereotipado
sem variação, sem originalidade, sem nada mais
que a mesma rigidez universal
indiferente a credos, nacionalidades, raças,
sempre o mesmo a ser representado
Supõe-se que a imagem que melhor expressa a
essência de algo
é a do triunfo alcançado, a realização plena
das potencialidades
o perfeito reflexo sensível da ideia eterna
transcendente inatingível
mas nela só se revela o em toda a parte igual e
em nada o próprio, o singular
Pelo contrário, há muitas formas de derrota,
muitas formas de a ela reagir
desespero gritado ou absorto, indiferença,
desalento, superação
tristeza, exaustão, apatia, descontrolo, mil
formas de falhar e de fugir
mil modos de o malogro suportar, mil mais de
lidar com frustração
Sonhar toda uma vida com a concretização de um
objetivo
sacrificar toda a satisfação de desejos
imediatos
atingir níveis cada vez melhores, mais altos de
desempenho
e acabar a reconhecer que nunca se alcançará o
que se quis
Capturar o momento do desvelamento da
impotência e mediocridade
– nada conseguiria se aproximar mais da
descoberta da essência
não da abstrata universal, mas da real e
concretamente singular
aquela que só desabrocha nos instantes de maior
fragilidade
e sublinha a expressão de um rosto radicalmente
único
a postura inesperada de um corpo que não reproduz
o habitual
desconforme com padrões e estereótipos do
fracasso
apenas em relação a si próprio podendo ser
igual
Entender a especificidade da condição humana
requer observar a reação de cada indivíduo ao
infortúnio
ver como se recompõe quando a sorte o dana
sentir o reconhecimento de todo um destino
cancelado
O olhar traído pela sua própria desvendada
incapacidade
– nada revela mais a verdade da natureza de uma
entidade
e diz mais a qualquer um que procure o humano
compreender
que as mil idênticas imagens de gente a
festejar ou a vencer
Mas a câmara foca-se, como sempre, no idílio do
triunfo
sempre a mesma alegria esfuziante totalmente
patente
e assim oculta o falhanço de todos, até do que
ganhou
por ser inevitável acabar no fim por perder
sempre
As luzes da ribalta encadeiam e cegam toda a perceção
o sentido do humano em nada se desvela aí
antes no derrotado que
se espoja desesperado no chão
– só a dor o liberta do que procurava além
fazendo-o regressar por um compasso aqui
ao vazio próprio em que não é nada nem ninguém
em que a agonia revela a existência em si e para si
© Joaquim Lúcio, 23/7/2024
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