"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sábado, 27 de julho de 2024

Os jogos

 

Horas de celebrações passadas espicaçam a chegada dos olímpicos

a finalidade do desporto, talvez da vida, simbolizada nesta consagração

Mas rapidamente se é possuído por aborrecimento até à náusea

sem mesmo a inércia já conseguir suportar tal sucessão

 

Os festejos, as expressões, os depoimentos são sempre os mesmos

por todo o lado, em qualquer tempo, em qualquer modalidade ou área

Ver uma celebração de vitória é o mesmo que ver todas

ver uns festejos de militantes, adeptos, fãs é o mesmo que os ver de outros

 

Na vitória, onde se supõe escorrer alegria espontânea do individual

só se vê, afinal, a subsunção da diferença ao mais estereotipado

sem variação, sem originalidade, sem nada mais que a mesma rigidez universal

indiferente a credos, nacionalidades, raças, sempre o mesmo a ser representado

 

Supõe-se que a imagem que melhor expressa a essência de algo

é a do triunfo alcançado, a realização plena das potencialidades

o perfeito reflexo sensível da ideia eterna transcendente inatingível

mas nela só se revela o em toda a parte igual e em nada o próprio, o singular

 

Pelo contrário, há muitas formas de derrota, muitas formas de a ela reagir

desespero gritado ou absorto, indiferença, desalento, superação

tristeza, exaustão, apatia, descontrolo, mil formas de falhar e de fugir

mil modos de o malogro suportar, mil mais de lidar com frustração

 

Sonhar toda uma vida com a concretização de um objetivo

sacrificar toda a satisfação de desejos imediatos

atingir níveis cada vez melhores, mais altos de desempenho

e acabar a reconhecer que nunca se alcançará o que se quis

 

Capturar o momento do desvelamento da impotência e mediocridade

­­– nada conseguiria se aproximar mais da descoberta da essência

não da abstrata universal, mas da real e concretamente singular

aquela que só desabrocha nos instantes de maior fragilidade

 

e sublinha a expressão de um rosto radicalmente único

a postura inesperada de um corpo que não reproduz o habitual

desconforme com padrões e estereótipos do fracasso

apenas em relação a si próprio podendo ser igual

 

Entender a especificidade da condição humana

requer observar a reação de cada indivíduo ao infortúnio

ver como se recompõe quando a sorte o dana

sentir o reconhecimento de todo um destino cancelado

 

O olhar traído pela sua própria desvendada incapacidade

– nada revela mais a verdade da natureza de uma entidade

e diz mais a qualquer um que procure o humano compreender

que as mil idênticas imagens de gente a festejar ou a vencer

 

Mas a câmara foca-se, como sempre, no idílio do triunfo

sempre a mesma alegria esfuziante totalmente patente

e assim oculta o falhanço de todos, até do que ganhou

por ser inevitável acabar no fim por perder sempre

 

As luzes da ribalta encadeiam e cegam toda a perceção

o sentido do humano em nada se desvela aí

antes no derrotado que se espoja desesperado no chão

– só a dor o liberta do que procurava além

fazendo-o regressar por um compasso aqui

ao vazio próprio em que não é nada nem ninguém

em que a agonia revela a existência em si e para si

 

 © Joaquim Lúcio, 23/7/2024

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