"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

A besta

 

Após décadas a ignorar contentes a besta

e, mais que a ignorar, a achincalhá-la, a espicaçá-la, a aviltá-la,

a ameaça tornou-se demasiado evidente,

até ao mais cego lhe entra pela cara,

para poderem desprezar, numa leda ilusão, o mau augúrio.

 

Rosnou a besta, rosna cada vez mais, rosna sonora e descaradamente

e, em algumas partes, morde já, esfacela já,

se já não está em secretas masmorras a desmembrar carcaças.

Agora todos estão ou em festa ou aterrorizados

perante o espetro das possibilidades do futuro.

 

Mas a besta não é o muro,

não são os cadáveres a boiar com a costa à vista,

a besta não é a caça ao paneleiro e ao trans,

nem a violência às mulheres todas no fundo putas,

a besta não são crianças em campos abandonadas à desdita

até encontrarem o e apodrecerem no descanso eterno,

a besta não é a corrida às armas e a idolatria da bomba,

não é estimulação de conflito, prenunciar a guerra,

a besta não é o holocausto das derradeiras florestas, das derradeiras selvas,

não é o desvairo genocida que despreza a compaixão para alimentar negócio,

a besta não é sequer a prisão arbitrária e a banalização da tortura,

não é a violação a granel, nem a matança maciça, global

– a besta é a repressão dos desejos de um adolescente,

a rejeição escarninha de uma paixão profunda,

a humilhação sofrida às mãos de professor cruel,

a satisfação sem nexo de todos os caprichos de consumo

a compensar o abandono sofrido por pais emancipados,

crianças a crescer entre seringas espalhadas pelo chão, pelo sofá,

com bêbedos a chegar a casa de violência indiscriminada na voz, no rosto e nas mãos,

creches a tornar pacíficos os programas de vida selvagem carniceiros,

a criar futuros rufias que zurzirão os mais frágeis, isolados e inaptos,

alunos apaparicados por inclusividades cada vez mais abrangentes,

cada vez menos exigentes, cada vez mais desresponsabilizadoras

a destilar preguiça, a ensaiar injúrias e calúnias,

a recriar irmandades de vandalismo e a treinar legiões de violência.

 

Cada época espera a besta num Átila ou num Hitler,

não vê que outro contexto os veria dementes, alienados,

psicopatas psicóticos guiados pelas suas sangrentas alucinações

contra os quais reagiria e que, de uma ou outra forma, deteria

– seriam quanto muito criminosos, habilidosos eventualmente,

mas que acabariam por ser fatidicamente travados

por mais funcionários e polícias e políticos e juízes que comprassem.

 

A besta não era Hitler.

A besta era a Europa,

a Europa do Iluminismo e das revoluções liberais,

a Europa da luta pelos direitos dos trabalhadores,

a Europa da razão, da ciência e do progresso,

a Europa da filosofia, do direito e dos direitos,

deglutindo-se a si própria numa maré de brutalidade primitiva

cujas presas afiadas exigiam carne e sangue

e receberiam como salvador quem se mostrasse mais capaz

de inundá-la de suplício, assassínio e atrocidade.

 

O povinho descansa sempre se idolatriza ou excomunga um líder,

se tudo correr para o torto poder-se-á colocar as culpas no demónio,

e os media lá vão sempre atrás da visão mais estulta,

um pastor leva mil pessoas a morrerem na Guiana

e só ele foi responsável, seduzia e manipulava, lavagens cerebrais

e toda essa gente que decidiu abdicar de pensamento, capacidade crítica,

avaliação do mais elementar bem e mal para se entregar nas suas mãos,

um tal conformismo, uma tal acefalia, uma tal cegueira

não indicia a mínima culpa da manada.

  

Ontem como hoje, a besta é a manada,

mas uma manada muito especial, desarvorada,

instigada por criaturas que começaram por humanas,

seres que foram marcados por deformação irreversível

e que ganham força à medida que cresce o pânico coletivo que induzem.

Não são demónios, não têm cascos, nem cornos, nem cauda espetuda,

vi-os por décadas nas aulas a desejar morte aos ciganos,

atirar para poços homossexuais, submissão das mulheres a trabalhos domésticos,

a desprezar, a repugnar-se de deficientes, a declarar os brasileiros isto,

os romenos aquilo, os chineses aqueloutro, os monhés outra coisa,

e, sempre que se juntavam nas manadas criadas diligentemente pelo sistema educativo

em determinados recantos de inclusividade,

as piadas e a brincadeira passavam a afirmação

e sentia-se a força atroz da alarvidade e crueldade

pronta para adesão à primeira horda em que sentissem a possibilidade de vitória.

  

Culpava-se antes os horrores da grande guerra, as misérias da grande depressão,

as humilhações das nações, os conflitos sociais, o capital a proteger-se do espetro                                                                                comunista.

E agora? Surgem do nada como uma aparição da Senhora?

O espantalho democrático do fascista é tão disparatado como o espantalho nazi do judeu.

Como no passado, a besta foi deixada crescer no nosso meio.

Um grunho era deixado à sua solidão, a crescer ressentimento e rancor,

a marcha triunfante da conquista de direitos parecia não ter fim

e nem se reparava que cada conquista celebrada triunfantemente sobre os grunhos

deixava mais gente de fora, excluía mais uns tantos que ainda não tinham com eles                                                                                    alinhado.

E é nas margens silenciosas, não nos primeiros e solitários grunhos,

que se encontra a chave para o advento da tão poderosa besta,

entre o cidadão banal que se encontra desapossado dos direitos de decisão

por partidos e elites e pequenos grupos de pressão irem toda a progressão de direitos                                                                                            decidindo

sem admitirem sequer a possibilidade de envolverem na deliberação

o velho consentimento da maioria, trazer todos para tal processo.

  

Os iluminados declaram que não se referendam direitos,

que as maiorias não podem decidir os direitos das minorias.

Mas há alguma coisa mais a decidir pelas maiorias que não os direitos e deveres?

E quem o diz? Um pequeno grupo que consegue lugar nas proximidades do poder

e passa a julgar que o povo deve ser protegido de si próprio,

que não se deve permitir que o povo decida por si como é próprio de democracia?

Exclui-se o povo, protege-se o povo da sua ignorância, deixa-se as decisões

para grupos de ativistas ou para remotos tecnocratas que não prestam contas a ninguém

e depois espantam-se que esse mesmo povo, paulatinamente, comece a formar a besta,

a qual deglutirá todos esses direitos inalienáveis pela goela

e os vomitará sob a forma de uma pasta de encarceramento e tortura e arbitrariedade.

 

A besta avança, na Europa, de leste para oeste

mas já domina outras paragens e, em breve, terá força para esmagar oposição.

Porém, em cada recanto onde a besta ainda não ganhou pujança,

continua-se a ignorar as sementes e o solo em que desponta, cresce e frutifica,

não se percebem, não se identificam os processos que à besta levam

por não se perceber que a banalidade do mal não é apenas a permissão social de

ou colaboração trivial com um poder dominante,

mas também a lenta admissão da rejeição do poder

que ignora, cala, despossessa, afasta os seus próprios cidadãos.

E os preconceitos e estereótipos que se não deixam expressar

vão continuando a alimentar as ruas, crescem nas paragens de autocarro,

animam as conversas nos centros comerciais e nos supermercados

e, enquanto não têm força, face a eventual admoestação

calam-se e deixam passar, até poderem juntar espingardas

e toda essa cambada (todas as pessoas que eles julgam ser cambada) fuzilar.  

  

O ódio cresce no meio da paz da sociedade,

congrega-se no número e visa estes e aqueles grupos

que, ao excluir a maioria da decisão, se julgava proteger

– ao contrário, conseguiu-se um ódio sempre a crescer,

os subsídios que alegadamente ganham sem merecer,

as casas que os trabalhadores passam uma vida a pagar a ser doadas,

a condescendência perante vandalismo ou pior crime,

a censura das convicções da maioria, impedidas de se expressar no espaço público,

a imposição de ideologias que ninguém votou como pura ciência indiscutível

– e as recriminações sempre a crescerem,

o sentimento do cidadão de ter perdido o direito à voz

e uma completa despreocupação das elites com a mudez imposta

até, subitamente, se darem conta da besta ter chegado

e ganhar um apoio que só aos iluminados parecerá inusitado.

 

Sim, a besta não é o muro, nem os cadáveres, nem a caça sexual,

nem a violência às mulheres, nem crianças abandonadas,

nem as armas, nem a guerra, nem os atentados ao ambiente,

nem o genocídio, nem a arbitrariedade, nem a tortura, nem a violação,

isso são as pegadas da besta, as consequências da besta,

as vítimas da besta, o impacto da besta no homem e na vida,

as chagas, as amputações, as deformações perpetradas pela besta,

ainda poucas se comparadas com a ameaça, com o que se avizinha,

não no futuro longínquo mas ao virar da esquina

numa madrugada de abuso, de prepotência e de chacina.

 

Temo pelo futuro dos meus filhos

e em pesadelos aflitivos a besta abocanha os seus corpos

e desfá-los como se não importassem para nada

num mundo onde a ferocidade será vulgar,

a bondade será rara, preciosa, clandestina

e a paz, como fraqueza desprezada,  não encontrará qualquer lugar. 


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. III, terra, pp. 212-218

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