"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Muitos rostos tem a loucura

 

Muitos rostos tem a loucura

e o pior deles é a razão,

a razão metafísica, a moral ditadura,

mas também a razão calculante de cada dimensão

 

– insuspeitada, porém, emergiu desta razão

uma face bem pior, o pior advento,

sua antítese total e maior realização,

a razão técnica, a razão instrumento.

 

Esquecida da sua origem no apetite

que desvairou até já não reconhecer nenhum limite,

retorna a ele, esquecida do seu próprio esquecimento,

num avatar derradeiro, como sua escrava, seu instrumento.

 

E aquilo que não conseguia ser como afirmação

ao infinito da sua incondicionada aspiração universal,

consegue-o ser agora na deglutiva apropriação

com que se visa suprir consumo sempre mais global

até à exaustão completa e a destruição total.

 

Miríades de cálculos multiplicam-se em todas as direções,

calculam-se as fontes e a renovação das energias,

calculam-se as formas de cada vez mais aumentar as produções,

calculam-se os ciclos de oferta e procura, e onde obter as mais valias,

calculam-se modos de não se esgotarem os recursos,

calculam-se receitas para obter o conformismo,

calculam-se transportes, frequência, volume e percursos,

calculam-se estímulos para renovar sempre o consumismo,

calculam-se notícias e mensagens para manipular os eleitores,

calculam-se sequências para provocar os desejados efeitos emotivos,

calculam-se as mudanças segundo um certo número e tipo de fatores,

calculam-se formas de relativizar os insucessos obtidos,

calculam-se percursos de mísseis e as baixas na potência odiada,

calculam-se os trajetos de meteoros, correntes e furacões,

calculam-se colisões de partículas até uma apenas teorizada,

calculam-se soluções filosóficas pelas conectivas de proposições,

calculam-se as idades das estrelas e sua longevidade estimada,

calculam-se os mais eficazes tipos de engate, ludíbrio e sedução,

calculam-se as calorias e os nutrientes de uma dieta ideal,

calculam-se danos e benefícios reputacionais de cada publicação,

calculam-se os impactos políticos de cada desastre ambiental,

calcula-se tudo sobre todos em todos os âmbitos e em todo o lado

e todo o cálculo parece sempre totalmente racional

mesmo tendo por base um hausto apetitivo escancarado

que, já não encontrando limites ou formas de contenção,

avança todo demência todo alucinação todo desvairado

como uma omnipotente goela que tudo intenta devorar

até já nada mais subsistir para, na usura técnica, calcular.

 

... mas pouco importa se posso calcular

que, com a operação x, y e z, ficarei com o corpo

do supermodelo que nunca cessei de invejar

e com o rosto da estrela de cinema

que nunca me cansei de idolatrar...  


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, Vol. III, terra, pp. 277-278

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