Chegou e perdurou inusitadamente
enquanto a morte cavalgava pelas cidades
e transformava a fingida indiferença
antes em pânico de massas acéfalas
agora num zelo temeroso por sobrevivência
Chegou como se buscasse as almas
cansadas de persistir só por persistir
numa misericordiosa eutanásia natural
que convidava enfim a desistir
E invadiu lares desprevenidos
da riqueza necessária ao conforto
contornou as esquinas das ruelas
até penetrar cada passagem e recanto
As extremidades devieram unidade informe
gélida e indeterminada na configuração
as articulações não fletiam intencionais
ou só a custo de doridos movimentos maquinais
Como custava ter de deixar o leito
e percorrer descalço um qualquer chão nu
como custava tirar e pôr roupagem
antes que as veias gelassem no vazio
Com este frio este gelo calafrio
as suas mãos buscariam o calor de uma caneca
plena de aquecimento lácteo ou tizânico
com café cacau soja coco ou outra coisa líquida
qualquer
que penetrasse o conforto das entranhas
e inundasse o tronco até que os membros
se sentissem satisfeitos e dormentes
– nesses prazeres triviais e inocentes
uma autenticidade única de pequenos dedos
concentraria uma verdade que nenhuma função
nenhum projeto nenhum estatuto nenhuma
perversão
conseguiria encontrar ou sequer sonhar
algum valor que com ela pudesse fazer par
E é aí nesse pueril gosto de viver só por viver
no som do riso de crianças num quarto
aconchegado
no cheiro da bebida quente a entorpecer a mente
no corpo em busca do precioso aquecimento
sem pretender alcançar mais nada que o agora
sentido aqui com o zelo desleixado do banal
que a serenidade pode surpreender uma
existência
com a plenitude tranquila de largar qualquer
finalidade
mesmo no meio do ambiente mais mortal
É aí que se encontra finalmente a verdade
da pertença a uma residência, a um local
ao aqui já sempre dado se enfim escutado
sob o bulício, o fragor, a indiferença da
cidade
que cega o olhar a qualquer sentido, qualquer
significado
Desejar alcançar o não desejo o desapego?
convencer-se de se estar a ser especial
por ao guru ao orientador ao mestre ser igual?
proferir uma constante formal gratidão vazia
para ocultar a completa incapacidade
de sacrifício e doação no dia-a-dia?
capturar uma rica e elevada tradição
de desprendimento, despojamento e abnegação
para centrar-se só em si e negligenciar cuidado
com o mundo que a cada qual foi consagrado?
Agarrada à caneca e enfiada no roupão
não ouviria com os ouvidos certamente o
silêncio
demasiado habituada à companhia de uma qualquer
toada
mas ouvi-lo-ia pela pele pelas narinas pela
carne
até retorno à origem sempre de novo olvidada –
para quê procurar alcançar serenidade e
plenitude
no transe dito meditar se nesta simples
quietude
a intimidade familiar enternecimento invadiria
com o odor deste condimento e daquela
especiaria?
o som das torradas solícitas a saltar
manteiga pelo pão quente a deslizar
os móveis de sempre a encher a moradia
com o conforto do esperado em cada dia
Tudo isto é banal tudo isto é nada
nada há aqui para visar e procurar –
e, logo, é esquecido no primeiro instante
posterior
visando alcançar qualquer coisa no além
que no final será só desespero e dor
Insinua-se em cada recanto de inconsciente
felicidade
a inquietude do desejo de algo mais
transportada pela infiltração da publicidade
até manchar e profanar laços e afetos especiais
fazendo-os parecer rotineiros e cansados
inferiores aos devaneios pelos aparelhos
inculcados
E a pouco e pouco se perde o gosto pelo
reservado
pela intimidade longamente partilhada
enfim pelo público e artificial trocada
até as lantejoulas e o pechisbeque também
cansarem
e os passos e os gestos nada de sentido
encontrarem
Só aí a alma sentirá saudade
desse templo passado de autenticidade
visto então como paraíso perdido
de um tempo que nunca poderá ser devolvido
Estrangeira agora a qualquer felicidade
a alma enfim reconhecerá a verdade
de ter ido doidamente à procura
daquilo mesmo que tinha na altura
Em cada qual resta para sempre a imagem
docemente dissolvendo-se no crepúsculo da
memória
de ter havido amor e sentido na viagem
pela qual em cada instante reverberava toda a
história
que o tornava significativo relevante
por ser somente aquilo que estava ali diante
Pastoreio diligentemente as doações da terra
as doações presentes na banalidade da ternura
no afeiçoar o barro para ser vaso taça e caneca
no bafo nebulento do acolhimento de uma manhã
fria
no sorriso que aquece e no choro que alivia
pastoreio as dádivas que tornam mais mundo o
mundo
mesmo que só lembrança vestígio de uma herança
e silenciosamente agradeço a proveniência do
seu originário fundo
a insondável possibilidade só sentida no
eremitério
onde sem distrações se deixa emergir o mistério
A luz incide nos tufos de ervas molhadas
entre as esparsas azinheiras acanhadas
num baldio recanto de subúrbio opaco
nas quadrículas da cidade um buraco
espaço deixado entre as artérias do urbano
no desleixo sem mundo do ambiente humano
– e cria aqui e agora uma clareira de sentido
pela qual a beleza se insinua de verdade
e provoca um arrepio na armadura do mentido
com um efémero resgate de tudo quanto foi
perdido
em abertura inesperada da perenidade
de uma tão pristina quanto vulgar serenidade
Nas traseiras dos arrabaldes das cidades
entre pneus abandonados e sucata ferrugenta
lixeiras desperdícios descampados
abandono da gente que já nem tenta
há a possibilidade de paz de transcendência
– as ocasiões são comuns são triviais
dão-se na mais imediata imanência
– os olhares para as ver é que são bem
especiais
olhares raros de pastor capazes de as cuidar
vigilantes para a cria serenamente a pastar
vigilantes para o inusitado que possa assomar
Em qualquer esquina em qualquer prédio em
qualquer rua
o olhar pode desvelar a magia que o ver situa
sem precisar de qualquer transcendental
experiência
apenas o percurso habitual da existência
É preciso purificar de novo o cristalino
purgar o olhar da catarata operativa
e cultivar o ver subtil cuidadoso e fino
que desvenda a orgânica crua e viva
E quando o encantamento o enlevar
é preciso protegê-lo como uma criança
impedi-lo de turvar impedi-lo de cegar
– em habitá-lo reside toda a esperança
– mesmo que seja dolorosa a evocação
e confundida com o grosseiro equívoco
que busca sentido no lado de trás de nada
por se recusar a que a realidade seja olhada
Procurar em formalidades rituais e no além
exatamente o sagrado que está sempre já aqui
sacrificar a entrega e o carinho ao habitual
rosto
na ânsia de magia maravilha libertação fora de
si
e toda a intimidade defraudada na voracidade
de uma busca de transcendente alteridade
que forneça não se sabe bem o quê
nem como nem para nem porquê
enquanto se menospreza o prazer pueril petiz
do calor que numa manhã fria faz feliz
quem nada busque para lá de ali estar
entre o aborrecimento confortante do familiar
– mesmo entre a morte sofrimento inferno
trazidas pelo tortuoso decurso deste inverno
entre as muitas formas de desvario loucura
entre tantas trilhas de infelicidade e desventura
dificilmente alguma entristece tanto
dificilmente alguma merece maior pranto...
© Joaquim Lúcio, 30/12/20
A felicidade em tons de singeleza e realidade. Bonito texto!
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