"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

domingo, 10 de janeiro de 2021

Frio

 

Chegou e perdurou inusitadamente

enquanto a morte cavalgava pelas cidades

e transformava a fingida indiferença

antes em pânico de massas acéfalas

agora num zelo temeroso por sobrevivência

Chegou como se buscasse as almas

cansadas de persistir só por persistir

numa misericordiosa eutanásia natural

que convidava enfim a desistir

E invadiu lares desprevenidos

da riqueza necessária ao conforto

contornou as esquinas das ruelas

até penetrar cada passagem e recanto

As extremidades devieram unidade informe

gélida e indeterminada na configuração

as articulações não fletiam intencionais

ou só a custo de doridos movimentos maquinais

Como custava ter de deixar o leito

e percorrer descalço um qualquer chão nu

como custava tirar e pôr roupagem

antes que as veias gelassem no vazio

 

Com este frio este gelo calafrio

as suas mãos buscariam o calor de uma caneca

plena de aquecimento lácteo ou tizânico

com café cacau soja coco ou outra coisa líquida qualquer

que penetrasse o conforto das entranhas

e inundasse o tronco até que os membros

se sentissem satisfeitos e dormentes

– nesses prazeres triviais e inocentes

uma autenticidade única de pequenos dedos

concentraria uma verdade que nenhuma função

nenhum projeto nenhum estatuto nenhuma perversão

conseguiria encontrar ou sequer sonhar

algum valor que com ela pudesse fazer par

 

E é aí nesse pueril gosto de viver só por viver

no som do riso de crianças num quarto aconchegado

no cheiro da bebida quente a entorpecer a mente

no corpo em busca do precioso aquecimento

sem pretender alcançar mais nada que o agora

sentido aqui com o zelo desleixado do banal

que a serenidade pode surpreender uma existência

com a plenitude tranquila de largar qualquer finalidade

mesmo no meio do ambiente mais mortal

É aí que se encontra finalmente a verdade

da pertença a uma residência, a um local

ao aqui já sempre dado se enfim escutado

sob o bulício, o fragor, a indiferença da cidade

que cega o olhar a qualquer sentido, qualquer significado  

 

Desejar alcançar o não desejo o desapego?

convencer-se de se estar a ser especial

por ao guru ao orientador ao mestre ser igual?

proferir uma constante formal gratidão vazia

para ocultar a completa incapacidade

de sacrifício e doação no dia-a-dia?

capturar uma rica e elevada tradição

de desprendimento, despojamento e abnegação

para centrar-se só em si e negligenciar cuidado

com o mundo que a cada qual foi consagrado?

 

Agarrada à caneca e enfiada no roupão

não ouviria com os ouvidos certamente o silêncio

demasiado habituada à companhia de uma qualquer toada

mas ouvi-lo-ia pela pele pelas narinas pela carne

até retorno à origem sempre de novo olvidada –

para quê procurar alcançar serenidade e plenitude

no transe dito meditar se nesta simples quietude

a intimidade familiar enternecimento invadiria

com o odor deste condimento e daquela especiaria?

o som das torradas solícitas a saltar

manteiga pelo pão quente a deslizar

os móveis de sempre a encher a moradia

com o conforto do esperado em cada dia

Tudo isto é banal tudo isto é nada

nada há aqui para visar e procurar –

e, logo, é esquecido no primeiro instante posterior

visando alcançar qualquer coisa no além

que no final será só desespero e dor

 

Insinua-se em cada recanto de inconsciente felicidade

a inquietude do desejo de algo mais

transportada pela infiltração da publicidade

até manchar e profanar laços e afetos especiais

fazendo-os parecer rotineiros e cansados

inferiores aos devaneios pelos aparelhos inculcados

E a pouco e pouco se perde o gosto pelo reservado

pela intimidade longamente partilhada

enfim pelo público e artificial trocada

até as lantejoulas e o pechisbeque também cansarem

e os passos e os gestos nada de sentido encontrarem

Só aí a alma sentirá saudade

desse templo passado de autenticidade

visto então como paraíso perdido

de um tempo que nunca poderá ser devolvido

Estrangeira agora a qualquer felicidade

a alma enfim reconhecerá a verdade

de ter ido doidamente à procura

daquilo mesmo que tinha na altura

 

Em cada qual resta para sempre a imagem

docemente dissolvendo-se no crepúsculo da memória

de ter havido amor e sentido na viagem

pela qual em cada instante reverberava toda a história

que o tornava significativo relevante

por ser somente aquilo que estava ali diante

 

Pastoreio diligentemente as doações da terra

as doações presentes na banalidade da ternura

no afeiçoar o barro para ser vaso taça e caneca

no bafo nebulento do acolhimento de uma manhã fria

no sorriso que aquece e no choro que alivia

pastoreio as dádivas que tornam mais mundo o mundo

mesmo que só lembrança vestígio de uma herança

e silenciosamente agradeço a proveniência do seu originário fundo

a insondável possibilidade só sentida no eremitério

onde sem distrações se deixa emergir o mistério

 

A luz incide nos tufos de ervas molhadas

entre as esparsas azinheiras acanhadas

num baldio recanto de subúrbio opaco

nas quadrículas da cidade um buraco

espaço deixado entre as artérias do urbano

no desleixo sem mundo do ambiente humano

– e cria aqui e agora uma clareira de sentido

pela qual a beleza se insinua de verdade

e provoca um arrepio na armadura do mentido

com um efémero resgate de tudo quanto foi perdido

em abertura inesperada da perenidade

de uma tão pristina quanto vulgar serenidade

 

Nas traseiras dos arrabaldes das cidades

entre pneus abandonados e sucata ferrugenta

lixeiras desperdícios descampados

abandono da gente que já nem tenta

há a possibilidade de paz de transcendência

– as ocasiões são comuns são triviais

dão-se na mais imediata imanência

– os olhares para as ver é que são bem especiais

olhares raros de pastor capazes de as cuidar

vigilantes para a cria serenamente a pastar

vigilantes para o inusitado que possa assomar

 

Em qualquer esquina em qualquer prédio em qualquer rua

o olhar pode desvelar a magia que o ver situa

sem precisar de qualquer transcendental experiência

apenas o percurso habitual da existência

É preciso purificar de novo o cristalino

purgar o olhar da catarata operativa

e cultivar o ver subtil cuidadoso e fino

que desvenda a orgânica crua e viva

E quando o encantamento o enlevar

é preciso protegê-lo como uma criança

impedi-lo de turvar impedi-lo de cegar

– em habitá-lo reside toda a esperança

– mesmo que seja dolorosa a evocação

e confundida com o grosseiro equívoco

que busca sentido no lado de trás de nada

por se recusar a que a realidade seja olhada

 

Procurar em formalidades rituais e no além

exatamente o sagrado que está sempre já aqui

sacrificar a entrega e o carinho ao habitual rosto

na ânsia de magia maravilha libertação fora de si

e toda a intimidade defraudada na voracidade

de uma busca de transcendente alteridade

que forneça não se sabe bem o quê

nem como nem para nem porquê

enquanto se menospreza o prazer pueril petiz

do calor que numa manhã fria faz feliz

quem nada busque para lá de ali estar

entre o aborrecimento confortante do familiar

– mesmo entre a morte sofrimento inferno

trazidas pelo tortuoso decurso deste inverno

entre as muitas formas de desvario loucura

entre tantas trilhas de infelicidade e desventura

dificilmente alguma entristece tanto

dificilmente alguma merece maior pranto...


© Joaquim Lúcio, 30/12/20

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