Nesses
dias de chumbo, as cremações sucediam-se freneticamente nas instalações funerárias.
Todos se apressavam, os enlutados, os funcionários, os agentes funerários, os
padres, sempre prestes a partir para outro sítio ou a preparar o próximo
serviço. Diziam meia dúzia de palavras rituais, quase ininteligíveis,
sem solenidade, sem zelo, e zarpavam de seguida. Os funcionários tagarelavam
indiferentes como se estivessem num encontro de amigos ou a recolher o lixo
urbano. Os enlutados não sabiam que atitude ter nesta azáfama operatória em que
se despachavam sem sentido de sagrado ou respeito os restos mortais.
O
ressurreto interrogava-se acerca da morte, desta morte, da morte vivida ou não
nesta era, nestes dias. Dirigiu-se ao crematório e lá observou longo tempo as
idas e vindas. A tensão inicial dos enlutados, as palavras de circunstância, o
deslizar das conversas para o quotidiano, o alívio final de todos a dirigir-se
rapidamente para os automóveis rapidamente dirigidos para longe, para as
ocupações e cuidados com que cada qual se queria preocupar para nem se insinuar na
consciência o seu ser para a morte. Já para o fim da tarde fúnebre, um último
conjunto de enlutados parecia particularmente enfadado, pela hora do serviço,
pelo atraso dos parentes, por toda a incomodidade da situação, constantemente
olhando para o relógio ou para o telemóvel, não conseguindo evitar bufar mais
ou menos disfarçadamente.
Nessa
altura, saiu das instalações, discretamente, uma senhora visivelmente comovida
para quem a visse. Mas ninguém a viu, exceto o ressurreto. Lembrava-se de a ter
visto de manhã. Já então tentava ser discreta, com dificuldade, por ser a
filha única da falecida. Levava agora a urna com as cinzas supostamente
maternais. Dirigiu-se, com passos pouco apressados, para o carro e depositou,
com muito cuidado, a urna no banco do passageiro. Olhou para o arvoredo que
ladeava as instalações, inspirou profundamente e torneou a viatura para entrar
no lugar do condutor. Ainda ficou parada um pouco mais até arranjar coragem
para continuar a vida. Aí, enfim, partiu. Nessa altura, por fim, o ressurreto
falou aos enlutados que, por ali, ainda estavam:
Ela levou simplesmente as cinzas nas suas mãos
mas guarda a sagração no mais fundo de si
o vazio de uma presença querida
jamais se ausentará da sua alma
a morte abriu-lhe a perceção das coisas todas
e cada gesto tem significado
cada palavra e silêncio é abertura
pela qual entrevê a maravilha e o terror
de morte e vida, de existir no possível
que verdadeiramente é e doa ser
A sua respiração, o seu olhar, a sua discrição
são sinais de existência autêntica
decidida coragem desassombrada da angústia
bem consciente da efemeridade de todo o
persistir
e da indiferença das mil preocupações diárias
Os seus passos percorrem e criam um caminho
e mesmo o desespero que poderá vir a sentir
terá valor, terá projeção, terá sentido
Mesmo que se mate já hoje ou amanhã
a sua vida terá valido a pena
intensamente experimentada na distância
docemente acarinhada na proximidade
com o desvelo da escuta de cada instante
e cuidadoso zelo atento ao fluir contínuo
Chorará silenciosamente a ausência
talvez totalmente solitária
e não exibirá um pranto teatral
nos momentos ritualmente destinados
à exibição dos sofrimentos encenados
Uma pedra infinitamente pesada
se instalou inamovível no seu peito
mas a sua dor abre-lhe o olhar para todo o
oculto
à cegueira da distração da pública azáfama
a sua dor desvela-lhe o sempre já aqui
esquecida presença subjacente a tudo o que se
apresenta
e ao morrer despedir-se-á em infinita mágoa
de cada coisa com o enternecimento do amor
triste pelo abandono aos destinos cegos da
terra
mas entregando-se serena ao silêncio eterno
Nem sei seu nome mas vi desdobrar-se sua
essência
em cada movimento que generosa doou ao meu
olhar
e um doloroso amor invadiu-me a alma
e transportou-se para o que tinha de dizer
Ela tinha as cinzas de uma vida entre as mãos
mas vós tende-las nos olhos e na boca e na
mente
incapazes de olhar para o milagre que se revela
em cada coisa
incapazes de ver qualquer autenticidade
incapazes de dizer uma palavra que faça algo
ser
incapazes de falar com qualquer outro
com sua estranheza e diferença e beleza
incapazes de conceber mundo e doar sentido
incapazes de perceber, incapazes de pensar
Porque vos importa a insignificância que este
disse àquele?
porque se prendem às peripécias indiferentes
porque se agarram até na morte aos factos
públicos
às causas do falecimento, às dívidas e aos bens
deixados
aos pormenores irrisórios de cada irrelevante
ocorrência?
porque tanto se sentem incomodados com os
súbitos silêncios?
porque não escutam o que tal silêncio diz
e têm de arranjar imediatamente distrações
uma nova tagarelice, um ecrã para enviar
mensagens sem sentido
ou apenas o de encontrar uma fuga ao vazio
um jogo rápido para entreter a consciência
antes que vos invada o mínimo pressentimento
do terrível desígnio da existência?
porque são tão importantes as preocupações
diárias
o negócio por concluir, o arranjo da máquina de
lavar
a partilha que há por concluir, a conta que
resta por pagar
o arquivamento de cada documento que está por ordenar
a jeitosa ou o jeitoso que desejam conquistar
o filho ou a filha que não quer estudar ou
trabalhar
mesmo na solenidade da sagração da morte
de pessoa, se não querida, conhecida, familiar
na despedida da possibilidade de convivência?
porque se cheira a incomodidade por cada um de
vós sentida
por terem de largar cada uma das vossas ínfimas
ocupações?
porque se adivinha o alívio que será sentido
quando despacharem estas mínimas formalidades
e puderem regressar ao entretenimento das
preocupações quotidianas?
A vossa vida é uma constante fuga à consciência
da vossa condição
não suportais o silêncio porque ele representa
um risco
o risco de assomar à consciência a sombra de um
para quê
um para quê que patenteie o absurdo da
condição mortal
– para quê esforço e empenho e malícia e
traição
para quê amealhar e construir e invejar e
cobiçar
para quê cumprir deveres, para quê se distrair, para quê se manter vivo
para quê as peripécias, a agitação, a colisão com
os outros
para quê as compensações, os confortos, os encontros
para quê agarrar-se a possessões, coisas, animais, pessoas
se tudo é inagarrável e só se agarra a
deformação provocada
para quê procurar desesperadamente manter
tudo quanto é cinza e à cinza voltará
caindo no esquecimento não só do que já não
está cá
mas do que nunca esteve e nunca existiu?
Passais a vida inteira a zelar para nunca se
pensar na morte
nunca a consciência se confrontar com a sua
inevitabilidade
só a referindo como um facto por todos
conhecido
mas que não se consente tomar consciência como
própria
só consentindo a alusão fugitiva de viés
que permita o rápido regresso ao paliativo
esquecimento
em que viveis sem mundo reagindo dispersivamente
ao ambiente
que assegure que o decurso prossiga momento
após momento
sem sombra de continuidade indicativa do
destino do existente
Comprastes no supermercado das crenças infantis
pensos rápidos para qualquer fraquejar na
vigilância pelo alheamento
assegurando que a mente não profira qualquer
dúvida
que a boca não enuncie a verdade crua
que o olhar não veja a óbvia essência do mortal
Mas quanto mais vos agarrais à proteção de
doutrinas marteladas
para o consolo do conhecimento subliminar que
tendes
mais é evidente a vossa real descrença
Afirmais uma vida no além
que esta só serve para mostrar o merecimento
que se tem
mas fugis desesperadamente à consciência de
existir para morrer
e quando a peste chega em nada mais pensais
que assegurardes que não sereis atingidos e
podereis sobreviver
Crentes hipócritas num além que torna
inexplicável
vosso temor, vosso terror, vosso pavor
o mesmo afinal que faz vos agarrardes às
crenças em que não conseguis acreditar
como prova o vosso guloso apegar-se à vida
mais do que o descrente, o único a que só esta vida
deveria importar
Consentis em ser privados de direitos, de
existência, de dignidade
se tal for feito para vos manter vivos entre as
paredes da cidade
numa vida de ansiedade, de sofrimento, de tensão
constante
mas que de modo algum trocaríeis para seguir
para diante
Ocultais a velhice dos supostamente queridos
em depósitos infetos bem longe da vista pública
e visitais o moribundo apenas para vos
assegurardes
que nem bem frente à morte ele a enfrenta enfim
mentindo sem pejo quanto ao seu regresso à vida
ao prazer, à festa, à dança, ao convívio, ao namoro
cuidando assim consolar os últimos momentos do
doente
que do seu estado terminal não pode estar mais
ciente
quando na verdade o que quereis é evitar a vossa
própria consciência
da natureza inevitável e irreversível da
existência
As cloacas mediáticas transmitem a contabilidade
da morte
desastres ali, epidemia aqui, criminalidade acolá
e vós segui-las como se fora classificação de
um campeonato
assim é que quereis a morte reduzida a número, percentagem, deve e haver
para nada aí, a não ser vaga alusão, ter a temer
A fugitiva consciência da crua morte
deve ser assegurada em qualquer caso
até no ato de finalmente se matar
– todos compreendem a pessoa declarar querer
morrer
como se fora um facto alheio que não está no
seu poder
sem coragem para levar a cabo a própria morte
porque há que assegurar que com ela o
pensamento nunca se confronte
e o Estado deve assegurar serviços da dita
eutanásia
só para cada qual não ter jamais de olhar de
frente
para o destino inevitável de seu ser existente
num cuidado extremo de ver tudo de viés
e nunca se ver a acabar na terra sobre a qual
assenta os pés
E mesmo frente a restos fúnebres
fazeis da morte um acidente de percurso
que há que deferir o mais rapidamente possível
para regressar às vossas obsessões habituais
sem que a sacralidade do momento
vos faça sequer pressentir o véu
que há muito fizestes descer
sobre a maravilha de todo o acontecer
Quase
desde o início das palavras do renascido, alguns dos enlutados fizeram menção
de retorquir, de protestar, até mesmo de agredir. Porém, outros aplacavam-nos,
fazendo sinais para indicar que era melhor não ligar, que era um louco. Por
vezes, as palavras atingiam duramente alguns deles e talvez por isso não tenha
sido interrompido. Mas, por fim, um homem enfurecido acabou por exigir:
“Respeite o falecido, respeite a nossa dor, respeite o nosso luto.” O olhar do
renascido dardejou de tal forma fulminante que o homem recuou visivelmente
atemorizado. Mais ainda ficou quando ele, como se fosse impelido por mola,
saltou para o meio dos enlutados prestes a lançar a derradeira acusação:
Que respeito existe no relógio ou ecrã para
onde obsessivamente olhais?
Que respeito existe na conversa escandalizada
com as ocorrências mais banais?
Que respeito existe no embaraço sentido no
mínimo silêncio?
Que respeito existe no alívio que desejais vir
a ter longe daqui?
Não respeitais o cadáver, nem vos respeitais a
vós
não respeitais sequer as crenças que afirmais
ter
não sabeis sequer o significado do respeito
tudo é para vós consumo, distração e esforço
para ganhar
o suficiente para vos continuardes a alienar
Dentro em breve soltareis um pequeno choro no
momento aprazado
alguns farão com enfado alguns gestos rituais
e libertar-vos-eis enfim deste importuno fardo
Já nem tendes a inconsistência do pranto de outrora
das carpideiras que berravam um estranho
desespero
para rituais crentes noutra vida
uma vida melhor, plena, que só faria sentido
celebrar
Como ninguém reparava que assim se insultava o
defunto
só se justificando tal desgosto num destino
infernal
e nunca nas delícias reservadas a todos os
eleitos
para gozar em comunhão a vida eterna?
Mas mostravam inviamente que aquela vida
importava
em vez de ser operatoriamente expedida para a
combustão
sem sagrado, sem comunhão, sem escuta, sem
velório
repartição pública, estação viária, apressado vomitório
cumprir uma reminiscência vaga de uma obrigação
de outrora
suportar formalidades mínimas e ir embora
Por que se velava num velório?
E as velas, velavam ou alumiavam?
As crenças pouco importavam nesse pressentir o
limiar
o tom pesaroso não deixava dúvidas
acerca do que verdadeiramente acreditar
que ocorreria enfim na hora de acabar
Caía o véu final sobre uma vida
mas a luz da vela buscava no escuro um caminho
uma abertura no final abismo pelo qual se pudesse
divisar mistério
o mistério da origem de existir
e talvez ter-se feito mundo e sentido
para tudo se ver subitamente concluído
como se nunca tivesse falado e pensado e
percebido
Velava-se a passagem para o insondável
que sempre foi o verdadeiro fundo de todo o
ocorrer
com assombro se sentia que o que caía era o véu
das aparências
a verdadeira realidade desta vida encontrava-se
no morrer
Velava-se a própria existência dos que ficavam
mais um pouco
por fim consciente que o véu estava nos olhos
dos viventes
e que o falecido o rompera ao encontro
do infinito poço da origem e do fim de
quaisquer entes
Terror existia certamente na vigilância do
segredo
terror da terra que reapropria a impertinente
eflorescência
mas maior ainda que o cadáver voltasse à vida
e lhe fosse negado o repouso eterno no vazio
aniquilante não só de vida, mas de memória
até ser certo que tal entidade nunca existiu
quando já nem houver registo ou história
Lavagem final do decurso das coisas todas
purgando toda a absurdidade do ocorrer
o fluxo do devir a escoar-se pelo ralo do porvir
e só a presença eterna do possível a se manter
impassível ante tudo o que se possa seguir e
conseguir
O nevoeiro cai no meu olhar
não existis como facto ou projeto
meros fenómenos sem substância
apareceis e desapareceis sem nexo
falo para o não ser e a irrelevância
porque não falar antes para o pó
por onde traço o meu caminho?
porque não falar antes para o vento
que apaga todo o traçado trilho?
Há que deixar que o acontecer aconteça
que a tarde já no fim enfim entardeça
que progrida até termo a doença
que tudo quanto não foi deixe de ser
Ide, vosso destino é a indiferença
vós nem estais sequer a acontecer
E
afastou-se. Os relatos cada vez mais distorcidos do ocorrido espalharam-se nas
redes sociais e o renascido passou a ser identificado, temido e odiado.
© Joaquim Lúcio, Início de 2021
Infelizmente, este é um tempo em que o sagrado da morte recuou, como afirma o Joaquim Lúcio. Mais um texto a tocar as nossas profundezas.Muito bom, como sempre.
ResponderEliminarLúcio ou Narciso?
ResponderEliminarLúcio nem é um pseudónimo, é uma espécie de segundo nome próprio que introduzi no meu nome há bem mais de 4 décadas.
EliminarAo ler revivi a morte da minha mãe, um livro de Tolstoi, outro de James Joyce. Tocou- me, portanto!
ResponderEliminarNada mais raro há, entre o caos da gente, que sentir... Um abraço.
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