"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Serviços fúnebres

 

   Nesses dias de chumbo, as cremações sucediam-se freneticamente nas instalações funerárias. Todos se apressavam, os enlutados, os funcionários, os agentes funerários, os padres, sempre prestes a partir para outro sítio ou a preparar o próximo serviço. Diziam meia dúzia de palavras rituais, quase ininteligíveis, sem solenidade, sem zelo, e zarpavam de seguida. Os funcionários tagarelavam indiferentes como se estivessem num encontro de amigos ou a recolher o lixo urbano. Os enlutados não sabiam que atitude ter nesta azáfama operatória em que se despachavam sem sentido de sagrado ou respeito os restos mortais.

   O ressurreto interrogava-se acerca da morte, desta morte, da morte vivida ou não nesta era, nestes dias. Dirigiu-se ao crematório e lá observou longo tempo as idas e vindas. A tensão inicial dos enlutados, as palavras de circunstância, o deslizar das conversas para o quotidiano, o alívio final de todos a dirigir-se rapidamente para os automóveis rapidamente dirigidos para longe, para as ocupações e cuidados com que cada qual se queria preocupar para nem se insinuar na consciência o seu ser para a morte. Já para o fim da tarde fúnebre, um último conjunto de enlutados parecia particularmente enfadado, pela hora do serviço, pelo atraso dos parentes, por toda a incomodidade da situação, constantemente olhando para o relógio ou para o telemóvel, não conseguindo evitar bufar mais ou menos disfarçadamente.

   Nessa altura, saiu das instalações, discretamente, uma senhora visivelmente comovida para quem a visse. Mas ninguém a viu, exceto o ressurreto. Lembrava-se de a ter visto de manhã. Já então tentava ser discreta, com dificuldade, por ser a filha única da falecida. Levava agora a urna com as cinzas supostamente maternais. Dirigiu-se, com passos pouco apressados, para o carro e depositou, com muito cuidado, a urna no banco do passageiro. Olhou para o arvoredo que ladeava as instalações, inspirou profundamente e torneou a viatura para entrar no lugar do condutor. Ainda ficou parada um pouco mais até arranjar coragem para continuar a vida. Aí, enfim, partiu. Nessa altura, por fim, o ressurreto falou aos enlutados que, por ali, ainda estavam:

 

Ela levou simplesmente as cinzas nas suas mãos

mas guarda a sagração no mais fundo de si

o vazio de uma presença querida

jamais se ausentará da sua alma

a morte abriu-lhe a perceção das coisas todas

e cada gesto tem significado

cada palavra e silêncio é abertura

pela qual entrevê a maravilha e o terror

de morte e vida, de existir no possível

que verdadeiramente é e doa ser

A sua respiração, o seu olhar, a sua discrição

são sinais de existência autêntica

decidida coragem desassombrada da angústia

bem consciente da efemeridade de todo o persistir

e da indiferença das mil preocupações diárias

Os seus passos percorrem e criam um caminho

e mesmo o desespero que poderá vir a sentir

terá valor, terá projeção, terá sentido

Mesmo que se mate já hoje ou amanhã

a sua vida terá valido a pena

intensamente experimentada na distância

docemente acarinhada na proximidade

com o desvelo da escuta de cada instante

e cuidadoso zelo atento ao fluir contínuo

Chorará silenciosamente a ausência

talvez totalmente solitária

e não exibirá um pranto teatral

nos momentos ritualmente destinados

à exibição dos sofrimentos encenados

Uma pedra infinitamente pesada

se instalou inamovível no seu peito

mas a sua dor abre-lhe o olhar para todo o oculto

à cegueira da distração da pública azáfama

a sua dor desvela-lhe o sempre já aqui

esquecida presença subjacente a tudo o que se apresenta

e ao morrer despedir-se-á em infinita mágoa

de cada coisa com o enternecimento do amor

triste pelo abandono aos destinos cegos da terra

mas entregando-se serena ao silêncio eterno

Nem sei seu nome mas vi desdobrar-se sua essência

em cada movimento que generosa doou ao meu olhar

e um doloroso amor invadiu-me a alma

e transportou-se para o que tinha de dizer

 

Ela tinha as cinzas de uma vida entre as mãos

mas vós tende-las nos olhos e na boca e na mente

incapazes de olhar para o milagre que se revela em cada coisa

incapazes de ver qualquer autenticidade

incapazes de dizer uma palavra que faça algo ser

incapazes de falar com qualquer outro

com sua estranheza e diferença e beleza

incapazes de conceber mundo e doar sentido

incapazes de perceber, incapazes de pensar

 

Porque vos importa a insignificância que este disse àquele?

porque se prendem às peripécias indiferentes

porque se agarram até na morte aos factos públicos

às causas do falecimento, às dívidas e aos bens deixados

aos pormenores irrisórios de cada irrelevante ocorrência?

porque tanto se sentem incomodados com os súbitos silêncios?

porque não escutam o que tal silêncio diz

e têm de arranjar imediatamente distrações

uma nova tagarelice, um ecrã para enviar mensagens sem sentido

ou apenas o de encontrar uma fuga ao vazio

um jogo rápido para entreter a consciência

antes que vos invada o mínimo pressentimento

do terrível desígnio da existência?

porque são tão importantes as preocupações diárias

o negócio por concluir, o arranjo da máquina de lavar

a partilha que há por concluir, a conta que resta por pagar

o arquivamento de cada documento que está por ordenar

a jeitosa ou o jeitoso que desejam conquistar

o filho ou a filha que não quer estudar ou trabalhar

mesmo na solenidade da sagração da morte

de pessoa, se não querida, conhecida, familiar

na despedida da possibilidade de convivência?

porque se cheira a incomodidade por cada um de vós sentida

por terem de largar cada uma das vossas ínfimas ocupações?

porque se adivinha o alívio que será sentido

quando despacharem estas mínimas formalidades

e puderem regressar ao entretenimento das preocupações quotidianas?

 

A vossa vida é uma constante fuga à consciência da vossa condição

não suportais o silêncio porque ele representa um risco

o risco de assomar à consciência a sombra de um para quê

um para quê que patenteie o absurdo da condição mortal

– para quê esforço e empenho e malícia e traição

para quê amealhar e construir e invejar e cobiçar

para quê cumprir deveres, para quê se distrair, para quê se manter vivo

para quê as peripécias, a agitação, a colisão com os outros

para quê as compensações, os confortos, os encontros

para quê agarrar-se a possessões, coisas, animais, pessoas

se tudo é inagarrável e só se agarra a deformação provocada

para quê procurar desesperadamente manter

tudo quanto é cinza e à cinza voltará

caindo no esquecimento não só do que já não está cá

mas do que nunca esteve e nunca existiu?

 

Passais a vida inteira a zelar para nunca se pensar na morte

nunca a consciência se confrontar com a sua inevitabilidade

só a referindo como um facto por todos conhecido

mas que não se consente tomar consciência como própria

só consentindo a alusão fugitiva de viés

que permita o rápido regresso ao paliativo esquecimento

em que viveis sem mundo reagindo dispersivamente ao ambiente

que assegure que o decurso prossiga momento após momento

sem sombra de continuidade indicativa do destino do existente

Comprastes no supermercado das crenças infantis

pensos rápidos para qualquer fraquejar na vigilância pelo alheamento

assegurando que a mente não profira qualquer dúvida

que a boca não enuncie a verdade crua

que o olhar não veja a óbvia essência do mortal

Mas quanto mais vos agarrais à proteção de doutrinas marteladas

para o consolo do conhecimento subliminar que tendes

mais é evidente a vossa real descrença

Afirmais uma vida no além

que esta só serve para mostrar o merecimento que se tem

mas fugis desesperadamente à consciência de existir para morrer

e quando a peste chega em nada mais pensais

que assegurardes que não sereis atingidos e podereis sobreviver

Crentes hipócritas num além que torna inexplicável

vosso temor, vosso terror, vosso pavor

o mesmo afinal que faz vos agarrardes às crenças em que não conseguis acreditar

como prova o vosso guloso apegar-se à vida

mais do que o descrente, o único a que só esta vida deveria importar

Consentis em ser privados de direitos, de existência, de dignidade

se tal for feito para vos manter vivos entre as paredes da cidade

numa vida de ansiedade, de sofrimento, de tensão constante

mas que de modo algum trocaríeis para seguir para diante

Ocultais a velhice dos supostamente queridos

em depósitos infetos bem longe da vista pública

e visitais o moribundo apenas para vos assegurardes

que nem bem frente à morte ele a enfrenta enfim

mentindo sem pejo quanto ao seu regresso à vida

ao prazer, à festa, à dança, ao convívio, ao namoro

cuidando assim consolar os últimos momentos do doente

que do seu estado terminal não pode estar mais ciente

quando na verdade o que quereis é evitar a vossa própria consciência

da natureza inevitável e irreversível da existência

As cloacas mediáticas transmitem a contabilidade da morte

desastres ali, epidemia aqui, criminalidade acolá

e vós segui-las como se fora classificação de um campeonato

assim é que quereis a morte reduzida a número, percentagem, deve e haver

para nada aí, a não ser vaga alusão, ter a temer

A fugitiva consciência da crua morte

deve ser assegurada em qualquer caso

até no ato de finalmente se matar

– todos compreendem a pessoa declarar querer morrer

como se fora um facto alheio que não está no seu poder

sem coragem para levar a cabo a própria morte

porque há que assegurar que com ela o pensamento nunca se confronte

e o Estado deve assegurar serviços da dita eutanásia

só para cada qual não ter jamais de olhar de frente

para o destino inevitável de seu ser existente

num cuidado extremo de ver tudo de viés

e nunca se ver a acabar na terra sobre a qual assenta os pés

E mesmo frente a restos fúnebres

fazeis da morte um acidente de percurso

que há que deferir o mais rapidamente possível

para regressar às vossas obsessões habituais

sem que a sacralidade do momento

vos faça sequer pressentir o véu

que há muito fizestes descer

sobre a maravilha de todo o acontecer

 

   Quase desde o início das palavras do renascido, alguns dos enlutados fizeram menção de retorquir, de protestar, até mesmo de agredir. Porém, outros aplacavam-nos, fazendo sinais para indicar que era melhor não ligar, que era um louco. Por vezes, as palavras atingiam duramente alguns deles e talvez por isso não tenha sido interrompido. Mas, por fim, um homem enfurecido acabou por exigir: “Respeite o falecido, respeite a nossa dor, respeite o nosso luto.” O olhar do renascido dardejou de tal forma fulminante que o homem recuou visivelmente atemorizado. Mais ainda ficou quando ele, como se fosse impelido por mola, saltou para o meio dos enlutados prestes a lançar a derradeira acusação:

 

Que respeito existe no relógio ou ecrã para onde obsessivamente olhais?

Que respeito existe na conversa escandalizada com as ocorrências mais banais?

Que respeito existe no embaraço sentido no mínimo silêncio?

Que respeito existe no alívio que desejais vir a ter longe daqui?

Não respeitais o cadáver, nem vos respeitais a vós

não respeitais sequer as crenças que afirmais ter

não sabeis sequer o significado do respeito

tudo é para vós consumo, distração e esforço para ganhar

o suficiente para vos continuardes a alienar

Dentro em breve soltareis um pequeno choro no momento aprazado

alguns farão com enfado alguns gestos rituais

e libertar-vos-eis enfim deste importuno fardo

Já nem tendes a inconsistência do pranto de outrora

das carpideiras que berravam um estranho desespero

para rituais crentes noutra vida

uma vida melhor, plena, que só faria sentido celebrar

Como ninguém reparava que assim se insultava o defunto

só se justificando tal desgosto num destino infernal

e nunca nas delícias reservadas a todos os eleitos

para gozar em comunhão a vida eterna?

Mas mostravam inviamente que aquela vida importava

em vez de ser operatoriamente expedida para a combustão

sem sagrado, sem comunhão, sem escuta, sem velório

repartição pública, estação viária, apressado vomitório

cumprir uma reminiscência vaga de uma obrigação de outrora

suportar formalidades mínimas e ir embora

 

Por que se velava num velório?

E as velas, velavam ou alumiavam?

As crenças pouco importavam nesse pressentir o limiar

o tom pesaroso não deixava dúvidas

acerca do que verdadeiramente acreditar

que ocorreria enfim na hora de acabar

Caía o véu final sobre uma vida

mas a luz da vela buscava no escuro um caminho

uma abertura no final abismo pelo qual se pudesse divisar mistério

o mistério da origem de existir

e talvez ter-se feito mundo e sentido

para tudo se ver subitamente concluído

como se nunca tivesse falado e pensado e percebido

Velava-se a passagem para o insondável

que sempre foi o verdadeiro fundo de todo o ocorrer

com assombro se sentia que o que caía era o véu das aparências

a verdadeira realidade desta vida encontrava-se no morrer

Velava-se a própria existência dos que ficavam mais um pouco

por fim consciente que o véu estava nos olhos dos viventes

e que o falecido o rompera ao encontro

do infinito poço da origem e do fim de quaisquer entes

Terror existia certamente na vigilância do segredo

terror da terra que reapropria a impertinente eflorescência

mas maior ainda que o cadáver voltasse à vida

e lhe fosse negado o repouso eterno no vazio

aniquilante não só de vida, mas de memória

até ser certo que tal entidade nunca existiu

quando já nem houver registo ou história

Lavagem final do decurso das coisas todas

purgando toda a absurdidade do ocorrer

o fluxo do devir a escoar-se pelo ralo do porvir

e só a presença eterna do possível a se manter

impassível ante tudo o que se possa seguir e conseguir

 

O nevoeiro cai no meu olhar

não existis como facto ou projeto

meros fenómenos sem substância

apareceis e desapareceis sem nexo

falo para o não ser e a irrelevância

porque não falar antes para o pó

por onde traço o meu caminho?

porque não falar antes para o vento

que apaga todo o traçado trilho?

Há que deixar que o acontecer aconteça

que a tarde já no fim enfim entardeça

que progrida até termo a doença

que tudo quanto não foi deixe de ser

Ide, vosso destino é a indiferença

vós nem estais sequer a acontecer

 

   E afastou-se. Os relatos cada vez mais distorcidos do ocorrido espalharam-se nas redes sociais e o renascido passou a ser identificado, temido e odiado.

 

© Joaquim Lúcio, Início de 2021  

5 comentários:

  1. Infelizmente, este é um tempo em que o sagrado da morte recuou, como afirma o Joaquim Lúcio. Mais um texto a tocar as nossas profundezas.Muito bom, como sempre.

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    1. Lúcio nem é um pseudónimo, é uma espécie de segundo nome próprio que introduzi no meu nome há bem mais de 4 décadas.

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  3. Ao ler revivi a morte da minha mãe, um livro de Tolstoi, outro de James Joyce. Tocou- me, portanto!

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    1. Nada mais raro há, entre o caos da gente, que sentir... Um abraço.

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