67
Um dos três jovens originais, o mais
novo, que ficou mais distante da possibilidade de agressão, veio ter um dia
sozinho com o renascido. Tinha deduzido das palavras anteriores deste que ele
previa um armagedão nuclear. Evoluiu da angústia para o desespero e
visivelmente não dormia bem há muito. Dilacerava-se e a sua inquietação era tal
que vinha procurar eventual tranquilização junto de quem menos estaria disposto
a dá-la, o renascido.
– Para quê fazer
seja o que for
se tudo irá em
breve terminar
para quê viver
alegria e dor
se a humanidade
não continuar
para quê criar
esperanças de futuro
se este será
bloqueado por um muro
para quê
expetativas, trabalho e afã
se já se sabe que
não haverá um amanhã?
– Vivi toda a minha
vida, esta e a anterior
sob a ameaça do
icónico cogumelo
Mas os
consumidores cansaram-se desse pesadelo
e preferiram
aterrorizar-se umas décadas
com outros
fantasmas tétricos coletivos
E parecia aos
habitantes de todo o planeta
que já não existia
qualquer ameaça, como tudo
o que os media
decidem não colocar na sua agenda
Na verdade, nunca
se arriscou tanto tal possibilidade
quanto nesses anos
de tranquilizadores pesadelos
sobre outras
desgraças, outros destinos milenares
outros
apocalipses, outros pânicos, outras chacinas
sendo o atual novo
velho terror apenas resultado
do arrojo com que
se estava a lidar com tal poder
capaz de devolver
a crosta da terra aos primórdios
como se nada fosse
e nada tivesse de ser considerado
enquanto se
encolhiam a um poder minúsculo
apenas por este
ameaçar com um ou outro cogumelo
Não sei se a
loucura coletiva aí chegará
Noutros tempos, os
fanfarrões foram levados para as traseiras
mas agora
exibem-se constantemente na teletela
e as gentes estão
convencidas que varrerão o inimigo
para debaixo do
tapete das potências obsoletas
com uma saraivada
de mísseis muito mas muito mais modernos
sem que se sinta
por aqui qualquer efeito
protegidos que
estamos pelo escudo mágico
produzido pelos
grandes estúdios cinematográficos
Noutras guerras
anteriores, a fanfarronice era a mesma
e nas vésperas da
conflagração tudo o resto era cancelado
tornado
antipatriótico, defensor dos inimigos, traidor
Os media promovem
esse ambiente
mas pode ser que
os poderes ainda não estejam
totalmente tomados
por psicóticas bazófias
Mas é apenas uma
questão de duração
pouco ou muito,
com estas ou piores armas ainda
os homens
encontram sempre razões que justificam
os espetros que
animam seus delírios
Temes que acabe o
mundo
mas o mundo já
acabou muitas vezes para muitos
Os índios que
viviam fundidos com a selva
e que só tinham
nomes e linguagem e evocações
para esse mundo
verde entretecido pelos deuses
simbolicamente
participado em cada animal, planta e rocha
como poderiam
sequer existir obrigados a viver
em infetos bairros
de lata nos arrabaldes das cidades
após a cobiça e a
ganância lhes terem arrasado e roubado o lar?
Os beduínos
corrompidos pelo luxo do ouro negro
não sonharão nos
seus absurdos arranha-céus
com o perdido
mundo de que foram despojados
os infindos
desertos ali mesmo ao lado
e, porém, tão
estranhos como se fossem de outra dimensão?
Os ashkenazi que
escaparam ao extermínio
puderam voltar às
suas casas, às suas cidades e aldeias
ao seu pequeno
mundo ou antiga ambiência
como se tivessem
apenas voltado de umas longas férias?
O mundo rural do
país na minha infância
entregue às
ruínas, aos incêndios e aos últimos idosos não suicidários
existirá ainda nos
esforços de recuperação turística
ou isso é apenas
mais um cenário oferecido
para a ilusão de
uma lembrança no mais radical dos esquecimentos?
E será diversa a
cidade onde nasci?
Goebbels preferiu
tirar a vida dos seis filhos
porque não
concebia a possibilidade de sua existência
no caos sem mundo
que se seguiria à derrota
Mas até leprosos
constituíram comunidades
e aprenderam a
viver em conjunto a sua condição
Quem sabe se não
existiriam sobreviventes do holocausto nuclear
e se também não
aprenderiam a viver com a sua condição
as suas doenças,
as suas feridas, as suas mutações
o seu inverno
duradouro, os seus estranhos alimentos
a presença
constante da morte em tal precaridade
e, porém, a vida,
apesar de tudo, a brotar em cada canto?
Não teriam cultos
novos, novos sortilégios
não estruturariam
de novo paredes de algum mundo
não haveria
poetas, profetas, divinos loucos
que redescobrissem
o encantamento e maldição da palavra
não teriam
rituais, insólitas danças, ritmo e melodia nalgum som?
E, caso nem mesmo
isso houvesse
nem homens, nem
uma sua estranha derivação
estás assim tão
apegado à destinação da espécie
que te importe a
mesma para lá da tua morte?
Farão os teus atos
apenas sentido se contribuírem
para algum futuro
de alguma humanidade?
Afinal, não estás
tão desenraizado quanto tu próprio te julgavas
ainda tens
consciência que nada és senão membro de uma espécie
e, por aí, pois a
espécie nada mais é que sua transitória manifestação
poderás ter
consciência da pertença à própria vida
A vida não será
erradicada
nem que se reduza
a bactérias extremófilas
Mas tudo volta a
ser questão de duração
Tudo parece
destinado à perdição
vida, planetas,
estrelas, galáxias
a busca da sua
preservação é fútil
apenas adiamento
do inevitável
Mas isso tudo o
que importa à tua consciência
não lhe encontras
sentido em si se não o reportares
a algo que
transcende completamente
aquilo que podes
fazer, agir, viver?
Percorremos essas
redes sociais
e podemos ver aí
os sintomas iniciais dessa doença
Mulheres
despeitadas lançam supostas indiretas
aos seus antigos
parceiros de que já nada querem, dizem, saber
declarando que se
deve zelar por uma mulher
dar-lhe isto e
aquilo e não sei mais o quê
se se quer
preservá-la no futuro
Homens ressentidos
com o que deram
apostam ir tratar
sem consideração as futuras
raivosos com a
ingratidão das já passadas
Nem sombra de
consciência do sexismo
da conceção das
relações como comércio
e das mulheres
como produto de compra e venda
mercadoria cujo
valor se especula ou deprecia
que perpassa por
ambos os tipos de declarações
Lições de
sabedoria julgam dar
os que aconselham
os comportamentos das famílias
dos professores,
dos empresários, dos políticos
apontando as
nefastas consequências
E se não
conseguirem escoamento do ressabiamento
acabam a afirmar a
lei do karma
nem sequer entre
encarnações, mas nesta mesmo
contra todas as
múltiplas evidências factuais
É curioso como
quem fica sempre surpreendido
com tudo o que
público acontece
mesmo se
longamente anunciado
ou facilmente
inferível do que ia ocorrendo
por ser incapaz da
mais elementar dedução causal
está sempre
disponível para estas sentenças consequenciais
extraídas da
lógica formal do ressentimento
Um gesto de
carinho não tem valor pelas consequências
mas pela sua
própria fruição e pelo cuidado de outro
e ambos serão o
mesmo se o gesto for autêntico
e não uma manha
para alcançar seja o que for
Um rosto que se
abre, abre-se aqui e agora
como um portal de
possibilidade de empatia e conversa
e amor e
incompreensão e ódio e rancor
tudo aqui e agora
e não como promessa de delícias
de futuro, de
família, de parceria, de traição
Uma agressão vale
por si e não pela possibilidade
de toda uma vida
de violência e terror e opressão
Os compromissos
são belos e fundam a temporalidade
mas são sempre
feitos e mantidos aqui e agora
e assim também
acabarão por ser traídos
O que acontecer,
acontecerá
e não virá do nada
como nada vem
mas, se cada gesto
for feito para uma consequência
nunca nada terá
valor em si para a consciência
e também nada terá
valor além
pois quando se
tornar aquém
irá só ser
considerado pelos seus efeitos
Ou algo é valioso
em si mesmo para ti
ou buscarás o
valor para sempre sem o encontrar em lado algum
Imagina que te era
dado o botão
para exterminares
a humanidade
Não o carregarás
pelo futuro
que já sabes que
acabará como tudo em geral tem de acabar?
Pensas que a
espécie possui uma qualquer superioridade
que a faz valer
mais que tudo o resto na natureza?
Como pensar assim
uma espécie destruidora
de todo o ambiente
de que vive e sobrevive?
Vale dessa forma
por ser construtora de seus próprios pesadelos
por criar cidades
que os seus próprios habitantes não conseguem suportar
mas em que estão
viciados e de que nem pensam em se livrar?
Não seria
misericordioso pôr fim a uma tal espécie enferma e ensandecida?
Será uma qualquer
ordem moral
que impedirá
exterminar a espécie que não cessa de tudo exterminar?
Ou será Deus que
te impedirá de carregar o botão
esse super-homem
que a psicose coletiva
projeta com mais
poderes que qualquer super-herói
da frustração e
desejo de retaliação popular?
Imagina que
estavas feio e disforme, gordo e velho
que tinhas sido
oprimido toda a vida
que tinhas sido
traído por cada uma das tuas relações
quer amores, quer
amizades, quer sócios, quer patrões
que nunca tinhas
realizado qualquer um dos teus sonhos
daqueles capazes
de orientar toda uma vida
– não é preciso
imaginar muito, isso é o habitual para a maioria
– porque razão não
carregarias no botão?
O renascido ficou à espera de uma
resposta que já sabia que não viria. Deixou passar um bocado e continuou:
Carregarias então
no botão?
Todo o teu
organismo se revolta
e é bem saudável
que assim seja
Mas nenhuma dessas
razões que os homens buscam
se aguentariam à
menor questionação
Significa que não
há uma razão?
A razão é o aqui e
agora
não nenhuma
transcendência de pacotilha
martelada para
dizer um qualquer disparate que nos convém
Há que dizer é porque
nos convém o disparate
Acordo ainda com
os sonhos embrulhados na consciência
estou dormente por
qualquer motivo inconsciente
ainda de olhos
fechados
ouço os sons, até
desagradáveis dos vizinhos
mas não é
desagradável poder ouvi-los
abro os olhos e
vejo a humidade a escurecer as paredes
o voo volteante de
uma mosca
olho pela janela,
para fora, vejo o azul do céu
o verde cambiante
das mil folhas da árvore em frente
estendo o braço e
a solidez da parede resiste-me
o meu corpo pesa
sobre a cama
e eu espreguiço-lhe
o peso para longe
cada meu gesto,
minha sensação, meu pensamento
até a dor que me
surge atrás nas costas
é fruído no prazer
de só estar vivo
Saio, encontro um
outro que cheira mal
procuro fugir-lhe,
encontrar um rosto mais apelativo
encontro ou não
encontro, falo, ando, gesticulo
outros habitam
constantemente o mundo
abrem portas que
não dão para lado algum
e eu saúdo-as,
evito-as, persigo-as, falo
digo algo para
quem me não compreenderá
mas que me ouviu e
eu lá sigo
sigo para onde,
para quê?
sigo para ver mais
azul e ouvir mais som
e gesticular mais
e falar mais
e por esse puro
estar vivo só por estar vivo
é que eu não
carrego no botão
Estou deprimido,
sem qualquer desejo de viver
acabo por decidir
o suicídio, mas primeiro dão-me o botão
Porque não
carregá-lo agora?
Porque esses
outros que me habitavam o existir
poderão, já que eu
já não posso, também fruir
E se eu não
encontrar aqui uma razão
nada impedirá que
eu carregue o botão
Pelo contrário,
são os fantasmas que assombram
a mente humana com
esperanças e expetativas
que são capazes de
criar uma alienação tal
deste estar vivo
numa alucinada dimensão visada
– além religioso,
os amanhãs que cantam na sociedade sem classes
a grandiosa
destinação nacional, a distópica utopia técnica –
que faça esquecer
a elementar razão para querer estar vivo
e aí, para a
realização do fantasma ou por frustração
é sempre possível
que se carregue o botão
Não falta gente a
dizer que é preciso uma nova ordem
para evitar que
isso aconteça
Não, é preciso é
convencer os homens
que qualquer nova
ordem será um novo pesadelo
e que se deve
fazer tudo para desacreditar esses fantasmas
e só acreditar na
fruição do mundo com os outros
Provocará isso
pobreza, deixaremos de lutar pelo crescimento
Ótimo, não são
precisos grandes gastos para cheirar o campo
para comermos
apenas o que precisamos
e para falarmos
com um amigo ou só um conhecido
Seria boa forma de
diminuir a agressão planetária
Zelar pelo pouco é
bem mais importante
que arquitetar
fantásticos horizontes
e se morrermos de
fome, morreremos
até o fim
poderemos olhar as cores, inspirarmos e falar
sentir a brisa,
ouvir o mar, fechar os olhos e sonhar
Sempre seria
melhor que caminhar para o abismo
provocado pela
fantasmática ansiedade e egoísmo
que apenas procura
transformar tudo em consumo
e espera, depois,
que um milagre nos forneça um rumo
O jovem, aliviado por desabafar e
aliviado pelas palavras do renascido, não reparou que ele não tinha posto de
parte o objeto do seu medo. Tranquilizado, foi embora habitado por estranha e
nova serenidade. Na verdade, não precisava de temer o cogumelo, não
sobreviveria o suficiente para ser sua vítima.
© Joaquim Lúcio, ressurreição