Num café, o renascido aceitou que alguns jovens se sentassem junto dele. Na televisão, apresentavam pormenores da tomada do poder num país remoto por uma força extremista, enquanto forças ocupantes se retiravam desordenadamente. Prestaram atenção ao discurso do chefe destas últimas forças, estupefactos com o seu descaramento. Perguntaram, então, qual a opinião do renascido que parecia não estar a ligar nenhuma ao que se passava. A sua voz começou a responder de forma algo alheada...
O grande sonho ocidental de skates, discotecas e minissaias
como o anterior no império persa de piscinas e cocktails
sempre foi o nosso delírio urbano e endinheirado
e o das castas privilegiadas de ambos os domínios
pago a peso de ouro ou petróleo ou papoilas
a ditadores fantoches e corruptos e seus títeres
O ódio antigo aos infiéis nunca foi esquecido
foi até redobrado, apurado, refinado
e será ungido com seu sangue nas grandes capitais
que continuarão após a peste olvidadas em diversão
até a madrugada voltar a amanhecer na agonia
de cadáveres amontoados e corpos estropiados
O senhor do mundo do alto da sua desfaçatez
faz um gigantesco manguito às meninas
que se entreteve com seus antecessores e pares
a fazer sonhar durante uma longa geração
para as largar como instrumentos já sem uso
no longo pesadelo da escravidão e da tortura
O senhor dito democrático não conta que o seu regime
era aqui e em tantas outras partes
partes de pirâmides de atlas de zigurates
uma imposição contra o povo paga com subornos e miséria
que se queria lavada por receções elegantes
pipocas refrigerantes jingles aos colaboradores
O senhor do mundo não se importa que haja
foragidos enriquecidos com o saque colonial
enquanto as manadas comprometidas
esperam o novo velho uso dos estádios
os animais esperam a televisiva censura
e as escolas esperam a requalificação
As barbas já habituadas à obscenidade
potenciada pela repressão do cio
babam-se por algumas novas vítimas
urbanas ocidentalizadas badalhocas
que foram serenamente contratualizadas
com as poupanças do senhor do mundo
As barbas radiantes prometem o sol dos seus dentes
no pandemónio desesperado dos que sabem bem
que são os escravos ou enforcados do futuro
e não serão protegidos por ninguém
muito menos pelo senhor do mundo
que já os decidiu destinados a expiar a sua culpa
Mas o que são umas centenas de milhar
face aos milhões que os senhores do mundo
sempre traíram no decurso da sua dominação?
Estes nem pertencem a qualquer das etnias
que o senhor do mundo se comprometeu a proteger
em discursos de solenidade e elevação
Uma pedra tumular cai sobre toda a região
e só das bestas resta esperar misericórdia
Os sonhos de toda uma geração
ficaram para sempre cancelados
Como tanta mulher por todo o nosso passado
resta chorar esquecer aguentar
Mas o senhor do mundo muito civilizado
irá sancionar cancelar conferências ou carreiras
por uso desta ou aquela expressão imprópria
enquanto oculta a mão com que assinou
as ordens todas de sequestro e execução
com uma muito razoável e desejada retirada
A verdade é que as potências da cupidez
da crueldade da avidez e da estultícia
governam todas as terras e todas as gentes
apenas se camuflando melhor ou pior
ou variando procedimentos e estilo
veludo algodão chita ou serapilheira
Não sei se cá ou lá ou todo o lado o horror
cai sobre o futuro de menino ou menina
que talvez agarrado ao peluche sentirá a dor
sem razão nem esperança nem redenção
a que será no leito abandonado
até se levantar para lavar o sangue derramado
E o senhor do mundo nunca sentirá vergonha
por se ter garantido das vítimas o silêncio
um silêncio que grita da terra as assombrações
de milhões e milhões de vozes amordaçadas
que no decurso dos anos foram espezinhadas
por suas interesseiras conquistas e retiradas
Mas o senhor do mundo tem de ser maquilhado
para aparecer na entrevista no documentário
que o vai fazer surgir como um herói contrariado
que contra as trevas garantiu sucesso extraordinário
- música épica a acompanhar seus passos
brilhos rostos sorridentes beijos e abraços
ninguém mencionará o sentido dos seus atos
far-se-ão festinhas aos seus cães ou gatos
© Joaquim Lúcio, 17/8/21