Após décadas a ignorar contentes a besta
e, mais que a ignorar, a achincalhá-la, a
espicaçá-la, a aviltá-la,
a ameaça tornou-se demasiado evidente,
até ao mais cego lhe entra pela cara,
para poderem desprezar, numa leda ilusão, o mau
augúrio.
Rosnou a besta, rosna cada vez mais, rosna sonora e descaradamente
e, em algumas partes, morde já, esfacela já,
se já não está em secretas masmorras a desmembrar
carcaças.
Agora todos estão ou em festa ou aterrorizados
perante o espetro das possibilidades do futuro.
Mas a besta não é o muro,
não são os cadáveres a boiar com a costa à vista,
a besta não é a caça ao paneleiro e ao trans,
nem a violência às mulheres todas no fundo putas,
a besta não são crianças em campos abandonadas à
desdita
até encontrarem o e apodrecerem no descanso eterno,
a besta não é a corrida às armas e a idolatria da
bomba,
não é estimulação de conflito, prenunciar a guerra,
a besta não
é o holocausto das derradeiras florestas, das derradeiras selvas,
não é o
desvairo genocida que despreza a compaixão para alimentar negócio,
a besta não
é sequer a prisão arbitrária e a banalização da tortura,
não é a violação a granel, nem a matança maciça,
global
– a besta é a repressão dos desejos de um
adolescente,
a rejeição escarninha de uma paixão profunda,
a humilhação sofrida às mãos de professor cruel,
a satisfação sem nexo de todos os caprichos de
consumo
a compensar o abandono sofrido por pais
emancipados,
crianças a
crescer entre seringas espalhadas pelo chão, pelo sofá,
com bêbedos a chegar a casa de violência indiscriminada na voz, no rosto
e nas mãos,
creches a tornar pacíficos os
programas de vida selvagem carniceiros,
a criar futuros
rufias que zurzirão os mais frágeis, isolados e inaptos,
alunos apaparicados por inclusividades cada vez mais abrangentes,
cada vez menos exigentes, cada
vez mais desresponsabilizadoras
a destilar preguiça, a ensaiar injúrias e calúnias,
a recriar
irmandades de vandalismo e a treinar legiões de violência.
Cada época espera a besta num Átila ou num Hitler,
não vê que outro contexto os veria dementes,
alienados,
psicopatas psicóticos guiados pelas suas sangrentas alucinações
contra os quais reagiria e que, de uma ou outra
forma, deteria
– seriam quanto muito criminosos, habilidosos
eventualmente,
mas que acabariam por ser fatidicamente travados
por mais funcionários e polícias e políticos e juízes que comprassem.
A besta não era Hitler.
A besta era a Europa,
a Europa do Iluminismo e das revoluções liberais,
a Europa da luta pelos direitos dos trabalhadores,
a Europa da razão, da ciência e do progresso,
a Europa da filosofia, do direito e dos direitos,
deglutindo-se a si própria numa maré de brutalidade
primitiva
cujas presas afiadas exigiam carne e sangue
e receberiam como salvador quem se mostrasse mais
capaz
de inundá-la de suplício, assassínio e atrocidade.
O povinho
descansa sempre se idolatriza ou excomunga um líder,
se tudo
correr para o torto poder-se-á colocar as culpas no demónio,
e os media
lá vão sempre atrás da visão mais estulta,
um pastor leva mil pessoas a morrerem na Guiana
e só ele foi
responsável, seduzia e manipulava, lavagens cerebrais
e toda essa gente que decidiu abdicar de pensamento, capacidade crítica,
avaliação do
mais elementar bem e mal para se entregar nas suas mãos,
um tal conformismo, uma tal acefalia, uma tal
cegueira
não indicia a mínima culpa da manada.
Ontem como hoje, a besta é a manada,
mas uma manada muito especial, desarvorada,
instigada por criaturas que começaram por humanas,
seres que foram marcados por deformação
irreversível
e que ganham
força à medida que cresce o pânico coletivo que induzem.
Não são demónios,
não têm cascos, nem cornos, nem cauda espetuda,
vi-os por décadas nas aulas a desejar morte aos
ciganos,
atirar para
poços homossexuais, submissão das mulheres a trabalhos domésticos,
a desprezar,
a repugnar-se de deficientes, a declarar os brasileiros isto,
os romenos
aquilo, os chineses aqueloutro, os monhés outra coisa,
e, sempre que se juntavam nas manadas criadas diligentemente pelo
sistema educativo
em determinados recantos de inclusividade,
as piadas e a brincadeira passavam a afirmação
e sentia-se a força atroz da alarvidade e crueldade
pronta para
adesão à primeira horda em que sentissem a possibilidade de vitória.
Culpava-se
antes os horrores da grande guerra, as misérias da grande depressão,
as humilhações
das nações, os conflitos sociais, o capital a proteger-se do espetro comunista.
E agora?
Surgem do nada como uma aparição da Senhora?
O espantalho
democrático do fascista é tão disparatado como o espantalho nazi do judeu.
Como no passado, a besta foi deixada crescer no nosso meio.
Um grunho
era deixado à sua solidão, a crescer ressentimento e rancor,
a marcha
triunfante da conquista de direitos parecia não ter fim
e nem se
reparava que cada conquista celebrada triunfantemente sobre os grunhos
deixava mais
gente de fora, excluía mais uns tantos que ainda não tinham com eles alinhado.
E é nas
margens silenciosas, não nos primeiros e solitários grunhos,
que se encontra a chave para o advento da tão poderosa besta,
entre o
cidadão banal que se encontra desapossado dos direitos de decisão
por partidos e elites e pequenos grupos de pressão irem toda a
progressão de direitos decidindo
sem admitirem sequer a
possibilidade de envolverem na deliberação
o velho
consentimento da maioria, trazer todos para tal processo.
Os iluminados declaram que não se referendam direitos,
que as maiorias não podem decidir os direitos das minorias.
Mas há
alguma coisa mais a decidir pelas maiorias que não os direitos e deveres?
E quem o
diz? Um pequeno grupo que consegue lugar nas proximidades do poder
e passa a
julgar que o povo deve ser protegido de si próprio,
que não se deve permitir que o
povo decida por si como é próprio de democracia?
Exclui-se o
povo, protege-se o povo da sua ignorância, deixa-se as decisões
para grupos de ativistas ou para remotos tecnocratas que não prestam
contas a ninguém
e depois espantam-se que esse mesmo povo, paulatinamente, comece a
formar a besta,
a qual
deglutirá todos esses direitos inalienáveis pela goela
e os vomitará sob a forma de uma pasta de encarceramento e tortura e
arbitrariedade.
A besta
avança, na Europa, de leste para oeste
mas já
domina outras paragens e, em breve, terá força para esmagar oposição.
Porém, em
cada recanto onde a besta ainda não ganhou pujança,
continua-se
a ignorar as sementes e o solo em que desponta, cresce e frutifica,
não se
percebem, não se identificam os processos que à besta levam
por não se
perceber que a banalidade do mal não é apenas a permissão social de
ou colaboração
trivial com um poder dominante,
mas também a
lenta admissão da rejeição do poder
que ignora,
cala, despossessa, afasta os seus próprios cidadãos.
E os
preconceitos e estereótipos que se não deixam expressar
vão
continuando a alimentar as ruas, crescem nas paragens de autocarro,
animam as conversas nos centros comerciais e nos supermercados
e, enquanto
não têm força, face a eventual admoestação
calam-se e
deixam passar, até poderem juntar espingardas
e toda essa
cambada (todas as pessoas que eles julgam ser cambada) fuzilar.
O ódio
cresce no meio da paz da sociedade,
congrega-se
no número e visa estes e aqueles grupos
que, ao
excluir a maioria da decisão, se julgava proteger
– ao
contrário, conseguiu-se um ódio sempre a crescer,
os subsídios
que alegadamente ganham sem merecer,
as casas que
os trabalhadores passam uma vida a pagar a ser doadas,
a
condescendência perante vandalismo ou pior crime,
a censura das convicções da maioria, impedidas de se expressar no espaço
público,
a imposição
de ideologias que ninguém votou como pura ciência indiscutível
– e as
recriminações sempre a crescerem,
o sentimento
do cidadão de ter perdido o direito à voz
e uma
completa despreocupação das elites com a mudez imposta
até,
subitamente, se darem conta da besta ter chegado
e ganhar um
apoio que só aos iluminados parecerá inusitado.
Sim, a besta
não é o muro, nem os cadáveres, nem a caça sexual,
nem a
violência às mulheres, nem crianças abandonadas,
nem as
armas, nem a guerra, nem os atentados ao ambiente,
nem o
genocídio, nem a arbitrariedade, nem a tortura, nem a violação,
isso são as
pegadas da besta, as consequências da besta,
as vítimas
da besta, o impacto da besta no homem e na vida,
as chagas,
as amputações, as deformações perpetradas pela besta,
ainda poucas
se comparadas com a ameaça, com o que se avizinha,
não no
futuro longínquo mas ao virar da esquina
numa
madrugada de abuso, de prepotência e de chacina.
Temo pelo futuro
dos meus filhos
e em
pesadelos aflitivos a besta abocanha os seus corpos
e desfá-los
como se não importassem para nada
num mundo
onde a ferocidade será vulgar,
a bondade
será rara, preciosa, clandestina