Quem assoma no recorte noturno do monte
tapando tantas estrelas com seu vulto?
Quem produz assim um calafrio tão-só com a sua
sombra?
Quem faz adivinhar um olhar que nos penetra
até o mais negro dos abismos?
Quem transporta a morte nos seus lábios e a
vida nos seus passos?
Quem traz o agouro de uma verdade indesejada
pronta a ser dita custe o que custar
como se fora questão de uma alvorada?
Um ladrão e um escravo, um plebeu e um cego
Roubei a flor e a humidade da jovem inocência
e paguei com longos anos de labores forçados
Quis erigir-me às alturas dos maiores
e descobri a minha natureza irremediavelmente
medíocre
A cegueira invadiu-me o olhar e tornou-me
incapaz de ver o habitual
para sempre condenado a ver a natureza nua e a
carne crua
para sempre incapacitado de desviar o olhar
ou fingir não ver o disposto mesmo em frente
para sempre impossibilitado de jogar os
cenários
que se põem e dispõem para gregariamente não
ver
aquilo mesmo que está sempre a acontecer
És um poeta, um profeta ou um louco
ou ao contrário um assassino prestes a atuar?
Deveremos te ouvir mesmo sem te perceber
ou é altura de fugir com medo do que tu possas
fazer?
Ouvir-se-á na tua voz uma dimensão sagrada
ou o eco dos danados lançados para sempre para
o nada?
É sinistro o tom que te embala
ou anuncia por fim a manhã tão desejada?
Não é diverso o poeta do profeta nas origens do
dizer
poética é a religião pristina que encanta o
símbolo com o verbo
e sem loucura não se transgride a ordem
habitual
para que a palavra o gesto o artefacto abram o
sagrado
e façam o divino irromper no ambiente humano
erguendo a catedral de todo o sentido e todo o
significado
E é assassino quem empunha o punhal para o
sacrifício
ou seu delírio demoníaco rompe o véu profano
trazendo até nós a força das potências
abissais?
E há verdadeiramente outro sagrado que não
o proveniente daquilo que vos parece nada?
A minha fala ressoa a madrugada pronta para a
luz
mas é feita de espesso breu hálito infeto
pútrido pus
A escuridão habita o meu olhar desenraizado
mas tento escutar a luz na respiração da terra
sem porém o conseguir sempre mais desesperado
pela urgência vibrante na voz de cada desterrado
Buscas então um caminho para o homem?
Ou visas a sua redentora destruição final?
Tuas pegadas no solo parece que se somem
e a tua fala incompreensível não diz o habitual
A tua mensagem parece não ser para nós
e ninguém consegue escutar a tua voz
Melhor seria se invertesses passos
aqui nunca construireis os menores laços
O homem quer apenas espelhos dos seus vícios
não quem lhe mostre chagas precipícios
quer de si próprio de seus medos se entreter
não quem o obrigue a escutar olhar e ver
quer sobretudo saciar a ansiedade com prazer
decorrer sem percurso a vida como eterno
e sem consciência do tempo enfim morrer
E hoje se queres a sua escuta sê ligeiro
nada que exceda o instante passageiro
receberá a mais ínfima das aprovações
dá-lhe ecos reflexos estímulos ilusões
não temas manipular a sua crença
é o que deseja em paixão febre doença
arrastado por fluxo ou maré à costa ou foz
como uma concha vazia como uma casca de noz
O pior que ao homem pode acontecer
é ser-lhe dado exatamente o desejado
Mas a minha fala não se dirige ao decorrer
da gente fragmentada a fuçar por todo o lado
A manada nada pode escutar por natureza
seu tropel impede qualquer silêncio
e a pastar e mugir se reduz a subtileza
de tudo quanto é mudo por essência
A minha fala é uma evocação do outro
da pessoa oculta na máscara de ser gente
e o que digo procura o diálogo o confronto
com mundo só pressentido em ser diferente
Em cada pessoa em cada obra em cada ente
há uma oportunidade de abertura
a uma dimensão que apenas se pressente
na superfície de aparências a rutura
Com um outro ficaria eternamente a conversar
à beira do precipício para onde se precipita o
homem
a praga que infesta a terra o céu o espaço o
mar
devorando todos os seres que neles morem
Mas é preciso despertá-lo do seu sono
tirá-lo da carcaça obscena que consome e oferta
fazê-lo despertar o som o olhar a escuta
encaminhá-lo para por seus passos sair por fim da
gruta
Tal caminho é o único que importa
e para franquear finalmente a ombreira
é precisa a chave para abrir a porta
e trazer o rosto marcado e oculto à soleira
Apenas isso? Encontrar um outro? Falar com ele?
Não percebo então o pavor que me tomava
não percebo a escuridão e a madrugada
não percebo o presságio de revelação
não percebo o odor místico de religião
Parecias vir anunciar uma mensagem
para a qual só para ouvir e entender
seria precisa a máxima coragem
e aguentar o que se iria padecer
Mas afinal buscas uma banalidade
segues o desejo habitual
certamente uma necessidade
mas nem sequer um ideal
Quanta luz e sombra ocultam as palavras
quanta reserva se mantém recolhida no patente
quanto se ignora no familiar e óbvio
quão idêntico parece o de raiz diferente
Julgas que os casais que só ouvem o outro
como ameaça de pesadelo a que há que fazer frente
e desenvolvem um monólogo com o par
fazem algo mais que solilóquio de demente?
Julgas que o político o professor o ator
se dirige ao outro se coloca em seu lugar
quando apenas busca reação de espetador
o apoio para o que está para ali a perorar?
Julgas que o industrial ou o publicitário
veem nos outros entes outros mundos
ou apenas buscam manipular consumos
de insaciáveis goelas abismos sem fundo?
Será a paixão autista secretora de endorfinas
que permite aceder a quem nem sequer vê
ou será a religião do ressentimento e
frustração
que lança o fiel para não se sabe o quê?
Serão os próximos os pais os irmãos os filhos
que permitirão vencer o radical egoísmo
muitas vezes vistos apenas como atilhos
outras como extensão de vaidade e narcisismo?
Será pela obra de arte que se descobre o outro
quando cada qual dela diferentemente se
apropria
enriquecendo certamente o próprio mundo
mas incapaz de atingir a autêntica autoria?
De certeza que atingir a alteridade
não passa da mais vulgar banalidade?
Nada há mais difícil que a abertura ao outro
nada também há que seja mais perigoso
nada ameaça mais conforto e segurança
nada há mais dilacerante e mais delicioso
O rompimento da bolha subjetiva
a que cada qual chama o mundo
é um verdadeiro rasgão no universo
abrindo o idêntico ao de raiz diverso
O que a gente chama guerra revoluções
não passa de seus sonhos e pesadelos
seus delírios alucinações obsessões
projeções da massa que no eu têm modelo
desejos e medos invejas e rancores
e sobretudo persistente frustração
visando no caos de que são os projetores
a impossível saciedade por destruição
O verdadeiro outro surge ao próprio
com a estrutura do religioso símbolo
uma abertura no mundo que o enriquece
com o pressentimento de uma outra dimensão
E essa abertura não cessa na relação
trazendo mais sentido mais respiração
como diálogo como luta como violência
agressão da pacata tranquila imanência
Pensas na enjoativa categoria da fofura
coraçõezinhos a embalar terna doçura
ou o abraço másculo de camarada
mostrando amizade longamente partilhada?
Pensa antes na adaga nas costas espetada
na traição diligentemente preparada
na guerra sem tréguas de pontos de vista
que busca sobre outro subjugação vitória
Pensa na dissimulada malícia calculista
na corrupção de que é tecida a história
as intenções ocultas de um abraço de inimigo
beijo arrebatado a esposa alheia num postigo
O outro não é um eco alívio consolação
o outro não é terapia de dor doença
o outro é a ameaça de uma dimensão hostil
capaz de destruir até minha presença
O outro abre-se em cada fechado mundo
mas sob a forma de chaga crua e viva
para ser lenta dolorosamente fruída
para ser delícia efémera sofrida
Do outro quero sofrer para sempre
pois só nele mistério se vislumbra
que faz existir eu e mundo e ente
eternamente oculto na penumbra
É esse o outro que procuras?
És afinal de facto louco
buscas morte ou desventura
todo o inferno sendo pouco
para descrever uma tal tortura
onde em asfixia golpe ou soco
buscas na agressão a abertura
E com ele ficarias a conversar?
Não seria antes a discutir e a berrar?
Como é possível dialogar com o oposto
ou até só com o de raiz diferente
se em comum não se encontra um gosto
numa dissensão sempre latente?
Dialogar não é um solilóquio
que se pronuncia frente ao espelho
Nunca haverá real colóquio
se se for incapaz de ouvir o alheio
Que interesse numa existência
que fosse só a reiteração do mesmo?
Para quê sequer linguagem
se não existir para outrem a coragem?
A palavra existe para falar
e não se fala para só a si mesmo se escutar
ou para deixar falar um discurso universal
indiferente ao orador individual
Há língua para falar com o outro
mesmo que tenha sido roubada pela gente
para ir repetindo o que ouve em todo o lado
tentando obliterar todo o diferente
até assegurar que cada entidade singular
é sempre a mesma em qualquer lugar
garantindo a consistência global
das peças que formam o todo social
E na cidade buscas desvelar o outro
na cidade buscas a luta e o encontro
na cidade buscas com a espada abrir
um rasgão onde possas um outro descobrir?
Julgas poder incomodar a massa
como se foras um filósofo de antanho
feito moscardo com o aguilhão
a acordar o bronco e o tacanho?
Mesmo a ele lembrarás o seu destino
embora pacatamente com os amigos
iludindo-se confortavelmente
acerca da morte que tinha pela frente
Mas tu serás trucidado pela turba
nem a julgamento terás direito
desprezado e ridicularizado
no final só pegarão nos teus bocados
para os deitar para qualquer lado
Não encontrarás qualquer outro
nem sequer um qualquer consorte
nos teus passos o destino já está pronto
e será apenas o olvido e morte
De algo se pode estar certo e seguro
só ao vivo é possível morrer
e se ao defunto foi dado um futuro
que seja ao menos o de algo dizer
O filósofo cria vir a renascer
mas ainda não tinha renascido
a não ser no que insistia em crer
julgando já antes ter morrido
Mas se o falecido regressa
exatamente como falecido
o que lhe aconteça não interessa
para trás ficou todo o vivido
Sem desejo medo ou ansiedade
desço de novo ao inferno da cidade
sabendo bem o que me espera
sempre inverno e nunca primavera
Por aqui já encontrei o outro
que disseste nunca poder encontrar
talvez após a queda na urbe volte
para podermos em paz e guerra falar
© Joaquim Lúcio, Janeiro
2021
Sem comentários:
Enviar um comentário