De entre os escombros de tantos passados,
tantas ilusões,
de entre o deserto dos esqueletos distópicos
urbanos,
de entre o ressentimento de tanta promessa
malograda,
de entre tanta imposição de absurdos
insustentáveis,
de entre o silêncio opaco do ruído, do
estrépito operatório,
de entre a fragmentação desenraizada das goelas
ávidas,
de entre as vielas insanamente percorridas
recorridas,
de entre as amplas artérias maquinalmente
devoradas,
de entre as voragens porta a porta
comercialmente anichadas,
de entre o entre dos tecidos apodrecidos pelas
pestes do desalento,
de entre o dentro da corrupção da essência
humana em praga,
de entre diante o espetáculo do extermínio e do
saque,
do frenesim da proliferação de artifícios para
saciar o insaciável,
a proliferação infinda de apetites até penúria
inevitável e final,
de entre o ambiente hostil a uma existência
projetada,
ambiente sem mundo, sem tempo, sem verdade,
que besta ou profeta ou pacificador ou
revolucionário,
que destinação, poeta, génio, santo ou herói
despojado da herança gasta e incapacitada
se erguerá com um brilho novo no olhar
para declinar sua força entre a vozearia da
manada
até um novo dizer pelos seus recantos se
insinuar
e a inquietude no gado despertar sensibilidade
capaz de gerar pessoas, sentido e verdade?
Nas brumas da manhã cinzenta, espessa e fria,
entre o ressoar de passos e tagarelice popular,
um bramir mais fundo se anuncia,
pronto para converter, convocar e transmutar
sem que se saiba que configurações desenhará
na tela ávida pela história que se escreverá.
A sombra que assoma na alvura espessa
um novo martelo no futuro percutirá
e não o fará para um além que o porvir adensa
mas no presente que só poderá ser cá.
Quem sabe as gravações que restarão na pedra?
Quem sabe os escombros que deixará atrás?
Quem sabe os portentos que lhe serão devidos?
Quem sabe a ternura dos crimes que cometerá?
Por agora tão-só pressentimento, talvez
miragem.
Por agora uma impressão subliminar na perceção.
Por agora pode ser menosprezado com coragem.
Por agora pode ser sonho, pesadelo, alucinação.
Por agora é só a hora de o renascido anunciar,
entre os destroços do passado, do presente, do
porvir,
o advento do que ainda está por ver, por se
manifestar
perdido entre a confusão indiscernível do fluxo
do devir.
Para quê a ressurreição do dizer, do proferir,
porque não deixar afundar desolação no silêncio
eterno,
o das máquinas a rugir sem alguém que as possa
ouvir,
sem nada germinar num estéril e perene inverno?
Nenhuma razão, nenhum sentido, nenhum destino,
o dizer encontra expressão em qualquer
silêncio,
qualquer silêncio convoca a palavra oculta e a
escuta,
até da informidade se precisar a forma
contundente
de alguém, enfim, decisivamente preparado para
a luta.
© Joaquim Lúcio, 12/1/21
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