"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

De entre os escombros de tantos passados, tantas ilusões


De entre os escombros de tantos passados, tantas ilusões,

de entre o deserto dos esqueletos distópicos urbanos,

de entre o ressentimento de tanta promessa malograda,

de entre tanta imposição de absurdos insustentáveis,

de entre o silêncio opaco do ruído, do estrépito operatório,

de entre a fragmentação desenraizada das goelas ávidas,

de entre as vielas insanamente percorridas recorridas,

de entre as amplas artérias maquinalmente devoradas,

de entre as voragens porta a porta comercialmente anichadas,

de entre o entre dos tecidos apodrecidos pelas pestes do desalento,

de entre o dentro da corrupção da essência humana em praga,

de entre diante o espetáculo do extermínio e do saque,

do frenesim da proliferação de artifícios para saciar o insaciável,

a proliferação infinda de apetites até penúria inevitável e final,

de entre o ambiente hostil a uma existência projetada,

ambiente sem mundo, sem tempo, sem verdade,

que besta ou profeta ou pacificador ou revolucionário,

que destinação, poeta, génio, santo ou herói

despojado da herança gasta e incapacitada

se erguerá com um brilho novo no olhar

para declinar sua força entre a vozearia da manada

até um novo dizer pelos seus recantos se insinuar

e a inquietude no gado despertar sensibilidade

capaz de gerar pessoas, sentido e verdade?

 

Nas brumas da manhã cinzenta, espessa e fria,

entre o ressoar de passos e tagarelice popular,

um bramir mais fundo se anuncia,

pronto para converter, convocar e transmutar

sem que se saiba que configurações desenhará

na tela ávida pela história que se escreverá.

 

A sombra que assoma na alvura espessa

um novo martelo no futuro percutirá

e não o fará para um além que o porvir adensa

mas no presente que só poderá ser cá.

 

Quem sabe as gravações que restarão na pedra?

Quem sabe os escombros que deixará atrás?

Quem sabe os portentos que lhe serão devidos?

Quem sabe a ternura dos crimes que cometerá?

 

Por agora tão-só pressentimento, talvez miragem.

Por agora uma impressão subliminar na perceção.

Por agora pode ser menosprezado com coragem.

Por agora pode ser sonho, pesadelo, alucinação.

 

Por agora é só a hora de o renascido anunciar,

entre os destroços do passado, do presente, do porvir,

o advento do que ainda está por ver, por se manifestar

perdido entre a confusão indiscernível do fluxo do devir.

 

Para quê a ressurreição do dizer, do proferir,

porque não deixar afundar desolação no silêncio eterno,

o das máquinas a rugir sem alguém que as possa ouvir,

sem nada germinar num estéril e perene inverno?

 

Nenhuma razão, nenhum sentido, nenhum destino,

o dizer encontra expressão em qualquer silêncio,

qualquer silêncio convoca a palavra oculta e a escuta,

até da informidade se precisar a forma contundente

de alguém, enfim, decisivamente preparado para a luta.

 

© Joaquim Lúcio, 12/1/21

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