"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Cicatriz

 

A cicatriz olhou para o seu passado

e desdenhou lamuriar-se

Tinha uma certa inveja das peles íntegras

mas orgulho da sua construída identidade

 

Questionava-se, porém, acerca de sua origem e natureza

perguntava se sua identidade seria inata ou adquirida

e, se adquirida, o teria sido por impacto físico

ou pela distorção produzida pelo ambiente social

 

Uma coisa era certa

em nada tinha decidido ser cicatriz

sua natureza era um facto

resultante de alheia determinação causal

 

Essa constatação entristeceu-a

Porquê orgulhar-se do que não resultara da sua ação?

Nunca fora possibilidade, só realidade incontornável

não se tornara cicatriz, era simplesmente o que era

 

A cicatriz não era desprovida de pensamento

e sabia bem que algo a tinha feito cicatriz

mas sua identidade circunscrevia-se ao que era

e não abrangia a transformação a partir de outra coisa

 

Aquilo que era nascera ao algo tornar-se

como tudo que existe e pode vir a existir

Que importa ao certo o que seria?

O que era só o era a partir de seu advir

 

O que a tivesse causado, aquilo em que fora causada

não lhe doava em nada qualquer identidade

era tão estranho como a estrela do céu

mais de facto – essa ao menos dava agora a luz passada

 

A cicatriz olhou o seu passado de cicatriz

e questionou-se de novo

Seria ela, cicatriz velha, a mesma

que se descobrira a si própria no início?

 

A cicatriz alterara-se ao envelhecer

mas também nada fizera para isso acontecer

Desfigurara-se, perdera a cor

os traços não eram aqueles em que se reconhecera

 

Nem a sua alteração ao longo de ser cicatriz

tinha afinal por si sido construída

A alteração simplesmente acontecera

sem ser, em nada, por si, de si, decidida

 

Como se considerar, pois, idêntica a si mesma?

Por se lembrar do que fora noutro tempo?

E tinha a certeza de que aquilo que lembrava

era tal qual o que antes tinha sido?

 

E se esquecesse, deixaria de ser o que era

mesmo tendo consciência imediata de si?

Esquecendo ou lembrando, haveria

alguma garantia dessa apreensão imediata?

 

Se esforçasse o suficiente a imaginação

poderia fantasiar o que seria antes de cicatriz

a regressão poderia levá-la a um dinossauro

ou até à mais remota bactéria primordial

 

E poderia acabar por crer em qualquer projeção

ser reencarnação de rei, santo ou herói

e deixar de haver a menor distinção

entre o que imaginava e lembrava

 

A memória é sempre uma recriação

uma história que se conta a si próprio

e, mesmo fiel, nunca poderia justificar

presunção da persistência de identidade

 

E o que dizer do agora preso no instante?

Acaso se poderá falar de uma identidade

se nem no tempo se desdobra?

Que eu decide e faz se é já outro em seguida?

 

Onde afinal o ser cicatriz se demora?

E pensou tudo isto ou algo por si o pensou?

Ao pensar, não se tornara outra coisa?

Não lhe era já estranha a orgulhosa de ainda há pouco?

 

A cicatriz percebeu-se, em si, só ficção

e despojou-se, para si, de toda a ilusão

Olhava sem olhos todo o decorrer

sem nada em si decidir seu ser

 

O suor escorria pelos seus sulcos no verão

O frio invernoso fazia-la tremer

 

nenhum agir seu, somente acontecer

 

© Joaquim Lúcio, 21/8/24

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