A cicatriz olhou para o seu passado
e desdenhou lamuriar-se
Tinha uma certa inveja das peles íntegras
mas orgulho da sua construída identidade
Questionava-se, porém, acerca de sua origem e natureza
perguntava se sua identidade seria inata ou adquirida
e, se adquirida, o teria sido por impacto físico
ou pela distorção produzida pelo ambiente social
Uma coisa era certa
em nada tinha decidido ser cicatriz
sua natureza era um facto
resultante de alheia determinação causal
Essa constatação entristeceu-a
Porquê orgulhar-se do que não resultara da sua ação?
Nunca fora possibilidade, só realidade incontornável
não se tornara cicatriz, era simplesmente o que era
A cicatriz não era desprovida de pensamento
e sabia bem que algo a tinha feito cicatriz
mas sua identidade circunscrevia-se ao que era
e não abrangia a transformação a partir de outra coisa
Aquilo que era nascera ao algo tornar-se
como tudo que existe e pode vir a existir
Que importa ao certo o que seria?
O que era só o era a partir de seu advir
O que a tivesse causado, aquilo em que fora causada
não lhe doava em nada qualquer identidade
era tão estranho como a estrela do céu
mais de facto – essa ao menos dava agora a luz passada
A cicatriz olhou o seu passado de cicatriz
e questionou-se de novo
Seria ela, cicatriz velha, a mesma
que se descobrira a si própria no início?
A cicatriz alterara-se ao envelhecer
mas também nada fizera para isso acontecer
Desfigurara-se, perdera a cor
os traços não eram aqueles em que se reconhecera
Nem a sua alteração ao longo de ser cicatriz
tinha afinal por si sido construída
A alteração simplesmente acontecera
sem ser, em nada, por si, de si, decidida
Como se considerar, pois, idêntica a si mesma?
Por se lembrar do que fora noutro tempo?
E tinha a certeza de que aquilo que lembrava
era tal qual o que antes tinha sido?
E se esquecesse, deixaria de ser o que era
mesmo tendo consciência imediata de si?
Esquecendo ou lembrando, haveria
alguma garantia dessa apreensão imediata?
Se esforçasse o suficiente a imaginação
poderia fantasiar o que seria antes de cicatriz
a regressão poderia levá-la a um dinossauro
ou até à mais remota bactéria primordial
E poderia acabar por crer em qualquer projeção
ser reencarnação de rei, santo ou herói
e deixar de haver a menor distinção
entre o que imaginava e lembrava
A memória é sempre uma recriação
uma história que se conta a si próprio
e, mesmo fiel, nunca poderia justificar
presunção da persistência de identidade
E o que dizer do agora preso no instante?
Acaso se poderá falar de uma identidade
se nem no tempo se desdobra?
Que eu decide e faz se é já outro em seguida?
Onde afinal o ser cicatriz se demora?
E pensou tudo isto ou algo por si o pensou?
Ao pensar, não se tornara outra coisa?
Não lhe era já estranha a orgulhosa de ainda há pouco?
A cicatriz percebeu-se, em si, só ficção
e despojou-se, para si, de toda a ilusão
Olhava sem olhos todo o decorrer
sem nada em si decidir seu ser
O suor escorria pelos seus sulcos no verão
O frio invernoso fazia-la tremer
nenhum agir seu, somente acontecer
© Joaquim Lúcio, 21/8/24
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