"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

domingo, 29 de setembro de 2024

Crava o ferro no rego do devir

 

Crava o ferro no rego do devir

a incapacidade de ser ou decidir

há cético quando se nega o advento

há dogmático se se deseja o rebento

Acontecerá a verdade e a justiça na cegueira

e as serpentes já não copularão de novo

O ideal assético impõe-se na caganeira

e vai-se passear impotência em Porto Covo

 

Corno se eleva na eternidade do rancor

e espeta a castração na dependência

Há um infinito gozo de viver a dor

como se a sacristia criasse a impenitência

A galinha poedeira põe a postura incontinente

porque nunca decidiu adjetivar-se

Será para sempre o que é, sofrimento penitente

forçada a subsistir sem pensar suicidar-se

 

Cruza o universo tridimensional o para si

na completa ignorância da espontaneidade

e acredita que se autodetermina em si

como se pudesse escapar à anterior causalidade

Julga superar representação no pensamento

mas alusão, símbolo, enigma é representação

Ser vago não esvazia a indeterminação

não de ser, mas sempre, sempre de conhecimento

 

Invariavelmente, o complexo dissolve-se no boçal

Em vez de reconhecer incapacidade radical

inventa-se uma superação qualquer à toa

de uma noção parcial que se passa por completa

assim apresentando explicitação que se escoa

para a cloaca máxima de oblívio repleta

Mas o que importa é que faça uma corrente

uma moda que satisfaça o vaidoso no presente

 

Se se é sapo, não se pode fazer passar por corcel

nem por nada que se possa enfim conceber belo

Logo, se se quer ser-lhe atribuído um papel

há que insuflar, insuflar, insuflar o corpo todo

até se conseguir impressionar os seus iguais

e conseguir suscitar temor noutros rivais

Quem pensar isso próprio só de político ou ator

não conhece a natureza do típico doutor

 

Liberta-te da determinação das gónadas

e da contemporização de conveniências

Tão cansativo é o espelhar de mónadas

quanto a sisifica absurdidade de existências

Langonha por langonha, antes baba ou ranho

cuja excreção não arrisque haver posteridade

A consciência dilui-se no remoto antanho

incapaz de projetar-se na quotidianidade

 

Sonhar um heroico passado delirante

que vai todos redimir ali diante

atolado de artroses e de banhas

hilariando a perspetiva de façanhas

Reduz-te à intransponível incapacidade

de conhecimento, beleza ou satisfação

O teu único destino é só senilidade

e por milagre talvez ainda uma masturbação   

 

Crava o ferro no rego do devir

a incapacidade de ser ou decidir

o futuro está nos ovos estrelados

e só espantalhos por todos são esperados

A redesignação sexual mais eficaz

consiste em espancar a líbido das serpentes

A andrógena batina trará a todos paz

hóstia raivosamente mordida com os dentes

 

© Joaquim Lúcio, abril de 2022

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