O quântico relógio liquefez-se no incerto
a decisão impôs à inércia o seu decreto
deixou o sujeito abandonado no deserto
sem destino ou com destino fatal secreto
O polegar oponível marcou a essência
do animal que visava em tudo o agarrar
reencontrando-se pesadelo na demência
do estranho primata que esqueceu seu lar
A sua loucura fê-lo habitar fantasmas
monstros, quimeras e abstrações
sem poder abandonar a arcaica essência
que o levava a agarrar até ficções
No paroxismo do absurdo, concebeu o tempo
como algo que havia também que agarrar
primeiro repetido, depois linear, enfim decomposto
capturável em fragmentos após despedaçar
Mas despedaçada foi sim a existência
cuja tessitura é a temporalidade
não como coisa, nem objeto, nem substância
unicamente pura possibilidade
Assim se instaurou o tempo longo
aquele que o primata doido ansiava agarrar
o objeto dos objetos do desejo de um sujeito
que sentia assim tudo poder subordinar
Mas o que se subordinou foi o sujeito
agora definido por se sujeitar
reduzido a partícula de agregado
onde só se poderia escravizar
O sujeito passou a ser numérico
como o tempo que queria sujeitar
alienando tudo o que tinha de diferente
e amalgamando-se como gente
*
Toda a gente sabe o que é o tempo
com a confiança de nem se precisar nisso pensar
mas esse tempo regula e determina o fazer
sem rosto, sem voz, sem projeto, sem ação
A configuração da vida dessa gente
é a de percorrer sem pensar o tempo
instante a instante sem perfazer um todo
que não o suposto na local contagem
O tempo longo é a quantidade indeterminada
pontos linhas sucessões de muitos, de miríades
milhares, milhares de milhões, biliões
o absurdo da escravatura a uma abstração
A gente gosta de se distrair de si no momento
perdido no oceano das séries matemáticas
esquecer-se da sua natureza temporal
não se confrontar jamais com a sua finitude
Gosta mesmo se o vive no sacrifício do labor
ainda se não vê nele o menor sentido
e apenas suporta o passar do tempo
o tempo longo burocrático ou cirúrgico
Gosta mesmo se só o pode suportar
pois assim se aliena de o pensar
aliena de si, de cada qual
e nada assombra como próprio, pessoal
O tempo longo é horário relógio calendário
é o tempo das regularidades universais
é o tempo genérico do cálculo, da função
é o tempo estranho à consciência e decisão
O tempo longo é sem tempo
apesar de tanto tempo no cronómetro
unidade de medida das mudanças
por si em si incomensuráveis
O tempo longo é, diz-se, objetivo
mas nunca se percebe de que objeto ao certo
pois todo o objeto é correlato subjetivo
e nunca se percebe nele sujeito sequer por perto
O tempo longo é a angustiante ditadura
contra a temporalidade do sujeito
a pessoa só o percebe sob a forma de tortura
de claustro corredor hausto sem ar no peito
O conforto de ensonar no tempo longo a consciência
é o suicídio cruel da possibilidade
Requer alheamento do poder de alterar
e a anestesia da insuportabilidade da agonia
O tempo longo é o lento assassínio da pessoa
na acefalia da duração impessoal até o fim
é o ingresso definitivo no caos da gente
e na determinação pelo simples ambiente
A gente teme perder a sua referência
por se julgar dependente de qualquer ter
mesmo um fictício mistificador
por ter perdido há muito o ser
Afinal, a gente para se tornar gente
precisou mutilar de vez possibilidade
ingressando assim na conformidade
onde só tem de ecoar e reagir ao ambiente
Os olhos pesam e pouco a pouco se adormece
a cera sela ouvidos e a voz emudece
O tempo longo enterra a possibilidade de pessoa
Nem o esquecimento do esquecimento ecoa
*
Cristaliza-se a possibilidade no apego
e julga-se encerrada de vez a existência
apenas se degradando protegida pelo ter
até nada se decidir e tudo acontecer
Assim é no enleio e no inferno
no tormento habitual e no vício rotineiro
Sofre-se tanto a perda daquele gesto terno
quanto labor que preenche de vazio o tempo inteiro
Passam dias, semanas, meses, cada estação
e tudo parece permanente e fixado
mas o espelho devolve desgaste e exaustão
e tudo o que se estacou está afinal mudado
Busca-se talvez o eterno ao querer parar
o fluir irreversível do possível
mas só se atinge a indefesa exposição
à deformidade, ao apodrecer, à erosão
As paredes estacadas da vida funcional
impregnam-se de rachas, viscosidades, bolor
tingidas sem cor de cinzento e torpor
até já nem se sentir cada achaque e cada mal
Misericordioso é o lento esboroamento da memória
a dissolução de toda a acutilância na vagueza
o desmoronamento das articulações do mundo
a impotência de desejar na esquina a surpresa
Não fora tudo se suavizar pela indiferença
e seria insuportável permanecer ainda vivo
mas assim consola a vaga ilusão de uma pertença
apenas por se alargar desmesuradamente o crivo
E é isto vida ou a substancialização da morte
numa orgânica que se mantém, mal, a funcionar
que realizou consigo própria um corte
que lhe permite tudo condescender, tudo suportar?
Até mesmo no ocaso debilitado de uma vida
é possível desencadear a aurora na existência
divisar enfim ao longe um horizonte
a redoma da clausura quebrar com violência
Mesmo já transmutado numa deformação grotesca
em que o anquilosamento quase impeça movimento
a vista nublada, imprecisa, vesga
a audição cansada, carcaça volumosa e pesada
é possível de novo existir, é possível de novo a vontade
é possível largar condicionamentos, algemas e prisões
é possível a suprema ilusão de liberdade
é possível ser sem cargos, sem domínios, relações
de novo, enquanto possível, amanhecer possibilidade
*
O mamífero distingue-se primitivamente pela sucção
e o primata encontra o discrime em agarrar
O agarrar cria o utensílio e a apropriação
mas só evoluindo com a aprendizagem do largar
O macaco poderá ir para novo ramo se deixar o anterior
o bebé supera o agarrar no puro prazer do atirar
o objeto apropriado é largado para alcançar o posterior
assinalado à volta pela curiosidade no olhar
Assim também se desenrola no espírito o progresso
sempre alcançando isto e aquilo em que se fixa
mas ascendendo só se larga e busca outro sucesso
Até que enfim se apercebe que o fim para que tende o largar
não é alcançar isto e aquilo novo, além, maior
mas a serenidade de nada mais que o uso imediato precisar
*
O movimento pelo qual emerge a autenticidade
é o desapego a todas as posses, estatutos, ligações
Só se reencontra em si mesmo a verdade
quem se desprende de todas as molduras e decorações
Nu de novo, cru de novo, sangue novo
com a inocência temperada da maldade
aberto ao possível malogro e frustração
como se rumo à realização e felicidade
O alívio decorre do cessar da insuportabilidade
e não de algum prémio ou vantagem ou favor
A frescura percorre a pele, penetra o ar os poros
por muito que mudar resulte em ansiedade e dor
E assim, neste ocaso decidido pelo tempo
reencontra-se, pela última vez, talvez
a inteireza do ser vazio, do despojamento
que permite nova clareza e lucidez
Larga, de novo, para sempre, o passado
dirigido à vertigem danada do futuro
Antes vir a ser pelo desconhecido torturado
que restar seguro escondido atrás do muro
Passa o transeunte com o destino cancelado
passa o conhecido que avisa lá do perigo
passa cada passo que já tenha sido dado
resta o novo que se despede do antigo
O jovem velho enfrenta o desconhecido
aberto a poder ser trucidado ou cuspido
mas sente em cada fibra que a cobardia
um beco familiar aviltante implicaria
O beco dos objetos cansados e torcidos
a tortura do insuportável habitual
abre-se assim em álea ampla, nebulenta
talvez prólogo de um jogo de terror
Um arrepio de medo e de prazer
percorre a espinha toda do acontecer
O novo velho abraça a frescura a advir
e penetra no nevoeiro para nunca mais sair
© Joaquim Lúcio, abril de 2024
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