"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Largar

 

O quântico relógio liquefez-se no incerto

a decisão impôs à inércia o seu decreto

deixou o sujeito abandonado no deserto

sem destino ou com destino fatal secreto

 

O polegar oponível marcou a essência

do animal que visava em tudo o agarrar

reencontrando-se pesadelo na demência

do estranho primata que esqueceu seu lar

 

A sua loucura fê-lo habitar fantasmas

monstros, quimeras e abstrações

sem poder abandonar a arcaica essência

que o levava a agarrar até ficções

 

No paroxismo do absurdo, concebeu o tempo

como algo que havia também que agarrar

primeiro repetido, depois linear, enfim decomposto

capturável em fragmentos após despedaçar

 

Mas despedaçada foi sim a existência

cuja tessitura é a temporalidade

não como coisa, nem objeto, nem substância

unicamente pura possibilidade

 

Assim se instaurou o tempo longo

aquele que o primata doido ansiava agarrar

o objeto dos objetos do desejo de um sujeito

que sentia assim tudo poder subordinar

 

Mas o que se subordinou foi o sujeito

agora definido por se sujeitar

reduzido a partícula de agregado

onde só se poderia escravizar

 

O sujeito passou a ser numérico

como o tempo que queria sujeitar

alienando tudo o que tinha de diferente

e amalgamando-se como gente

 

*

 

Toda a gente sabe o que é o tempo

com a confiança de nem se precisar nisso pensar

mas esse tempo regula e determina o fazer

sem rosto, sem voz, sem projeto, sem ação

 

A configuração da vida dessa gente

é a de percorrer sem pensar o tempo

instante a instante sem perfazer um todo

que não o suposto na local contagem

 

O tempo longo é a quantidade indeterminada

pontos linhas sucessões de muitos, de miríades

milhares, milhares de milhões, biliões

o absurdo da escravatura a uma abstração

 

A gente gosta de se distrair de si no momento

perdido no oceano das séries matemáticas

esquecer-se da sua natureza temporal

não se confrontar jamais com a sua finitude

 

Gosta mesmo se o vive no sacrifício do labor

ainda se não vê nele o menor sentido

e apenas suporta o passar do tempo

o tempo longo burocrático ou cirúrgico

 

Gosta mesmo se só o pode suportar

pois assim se aliena de o pensar

aliena de si, de cada qual

e nada assombra como próprio, pessoal

 

O tempo longo é horário relógio calendário

é o tempo das regularidades universais

é o tempo genérico do cálculo, da função

é o tempo estranho à consciência e decisão

 

O tempo longo é sem tempo

apesar de tanto tempo no cronómetro

unidade de medida das mudanças

por si em si incomensuráveis

 

O tempo longo é, diz-se, objetivo

mas nunca se percebe de que objeto ao certo

pois todo o objeto é correlato subjetivo

e nunca se percebe nele sujeito sequer por perto

 

O tempo longo é a angustiante ditadura

contra a temporalidade do sujeito

a pessoa só o percebe sob a forma de tortura

de claustro corredor hausto sem ar no peito

 

O conforto de ensonar no tempo longo a consciência

é o suicídio cruel da possibilidade

Requer alheamento do poder de alterar

e a anestesia da insuportabilidade da agonia

 

O tempo longo é o lento assassínio da pessoa

na acefalia da duração impessoal até o fim

é o ingresso definitivo no caos da gente

e na determinação pelo simples ambiente

 

A gente teme perder a sua referência

por se julgar dependente de qualquer ter

mesmo um fictício mistificador

por ter perdido há muito o ser

 

Afinal, a gente para se tornar gente

precisou mutilar de vez possibilidade

ingressando assim na conformidade

onde só tem de ecoar e reagir ao ambiente

 

Os olhos pesam e pouco a pouco se adormece

a cera sela ouvidos e a voz emudece

O tempo longo enterra a possibilidade de pessoa

Nem o esquecimento do esquecimento ecoa

 

*

 

Cristaliza-se a possibilidade no apego

e julga-se encerrada de vez a existência

apenas se degradando protegida pelo ter

até nada se decidir e tudo acontecer

 

Assim é no enleio e no inferno

no tormento habitual e no vício rotineiro

Sofre-se tanto a perda daquele gesto terno

quanto labor que preenche de vazio o tempo inteiro

 

Passam dias, semanas, meses, cada estação

e tudo parece permanente e fixado

mas o espelho devolve desgaste e exaustão

e tudo o que se estacou está afinal mudado

 

Busca-se talvez o eterno ao querer parar

o fluir irreversível do possível

mas só se atinge a indefesa exposição

à deformidade, ao apodrecer, à erosão

 

As paredes estacadas da vida funcional

impregnam-se de rachas, viscosidades, bolor

tingidas sem cor de cinzento e torpor

até já nem se sentir cada achaque e cada mal

 

Misericordioso é o lento esboroamento da memória

a dissolução de toda a acutilância na vagueza

o desmoronamento das articulações do mundo

a impotência de desejar na esquina a surpresa

 

Não fora tudo se suavizar pela indiferença

e seria insuportável permanecer ainda vivo

mas assim consola a vaga ilusão de uma pertença

apenas por se alargar desmesuradamente o crivo

 

E é isto vida ou a substancialização da morte

numa orgânica que se mantém, mal, a funcionar

que realizou consigo própria um corte

que lhe permite tudo condescender, tudo suportar?

 

Até mesmo no ocaso debilitado de uma vida

é possível desencadear a aurora na existência

divisar enfim ao longe um horizonte

a redoma da clausura quebrar com violência

 

Mesmo já transmutado numa deformação grotesca

em que o anquilosamento quase impeça movimento

a vista nublada, imprecisa, vesga

a audição cansada, carcaça volumosa e pesada

 

é possível de novo existir, é possível de novo a vontade

é possível largar condicionamentos, algemas e prisões

é possível a suprema ilusão de liberdade

é possível ser sem cargos, sem domínios, relações

de novo, enquanto possível, amanhecer possibilidade

 

*

 

O mamífero distingue-se primitivamente pela sucção

e o primata encontra o discrime em agarrar

O agarrar cria o utensílio e a apropriação

mas só evoluindo com a aprendizagem do largar

 

O macaco poderá ir para novo ramo se deixar o anterior

o bebé supera o agarrar no puro prazer do atirar

o objeto apropriado é largado para alcançar o posterior

assinalado à volta pela curiosidade no olhar

 

Assim também se desenrola no espírito o progresso

sempre alcançando isto e aquilo em que se fixa

mas ascendendo só se larga e busca outro sucesso

 

Até que enfim se apercebe que o fim para que tende o largar

não é alcançar isto e aquilo novo, além, maior

mas a serenidade de nada mais que o uso imediato precisar

 

*

  

O movimento pelo qual emerge a autenticidade

é o desapego a todas as posses, estatutos, ligações

Só se reencontra em si mesmo a verdade

quem se desprende de todas as molduras e decorações

 

Nu de novo, cru de novo, sangue novo

com a inocência temperada da maldade

aberto ao possível malogro e frustração

como se rumo à realização e felicidade

 

O alívio decorre do cessar da insuportabilidade

e não de algum prémio ou vantagem ou favor

A frescura percorre a pele, penetra o ar os poros

por muito que mudar resulte em ansiedade e dor

 

E assim, neste ocaso decidido pelo tempo

reencontra-se, pela última vez, talvez

a inteireza do ser vazio, do despojamento

que permite nova clareza e lucidez

 

Larga, de novo, para sempre, o passado

dirigido à vertigem danada do futuro

Antes vir a ser pelo desconhecido torturado

que restar seguro escondido atrás do muro

 

Passa o transeunte com o destino cancelado

passa o conhecido que avisa lá do perigo

passa cada passo que já tenha sido dado

resta o novo que se despede do antigo

 

O jovem velho enfrenta o desconhecido

aberto a poder ser trucidado ou cuspido

mas sente em cada fibra que a cobardia

um beco familiar aviltante implicaria

 

O beco dos objetos cansados e torcidos

a tortura do insuportável habitual

abre-se assim em álea ampla, nebulenta

talvez prólogo de um jogo de terror

 

Um arrepio de medo e de prazer

percorre a espinha toda do acontecer

O novo velho abraça a frescura a advir

e penetra no nevoeiro para nunca mais sair

 

© Joaquim Lúcio, abril de 2024

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