"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Se o teu cheiro fosse habitação

Se o teu cheiro fosse habitação

lá dormiria eternamente

sem desejo de sair até para a comida

e morreria assim dormente

sem me aperceber que meu corpo definhava

até à consequência de uma morte abençoada.

Se o teu cheiro fosse habitação

lá moraria até a minha dissolução

em moléculas incapazes de lembrança,

amnésica bem-aventurança,

de quem era antes de morar-te

e nesse cheiro encontrar meu baluarte.

Se o teu cheiro fosse habitação

nada mais no mundo poderia eu habitar

porque nesse cheiro se concretizaria

tudo o que procurei em cada mulher encontrar

e só nele se realizaria

o que em cada uma tentava amar.

Se o teu cheiro fosse habitação

antes ele existir e eu não

não mais teria consciência de mim mesmo

não mais haveria eu e relação ao outro

só tendo consciência do que me envolveria

e no qual me dissolveria em fusão

até me aniquilar na sua absorção.

Se o teu cheiro fosse habitação... 


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, vol. II, abertura, 1ª ed., Madrid, Bubok, 2019; 3ª ed., KDP, 2022, p. 99.

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