"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

domingo, 19 de fevereiro de 2023

Invade, pouco a pouco, o depressivo

Invade, pouco a pouco, o depressivo uma ausência não só de vontade, mas de desejo,

a não ser de sono, cada vez mais contínuo e frequente até já pouco se acordar

ou ficar acordado sem força para abrir os olhos, sem força para querer se levantar,

um avassalador cansaço à mínima ação ou apenas ao simples facto de a intencionar,

e talvez, em alguns, alguma fome, embora mais provável seja que aquilo que consome

seja tentativa de preencher vazio de alguma forma sem sentir necessidade do que come,

mesmo que possa comer cada vez mais só para entreter-se, boca a fuçar, olhos vazados.

A pouco e pouco, sai o menos que puder, lixo e compras, trabalho se tiver, a vida some.

Pensa ir ao café mas acaba por não ir, todos o julgariam a mais, ficariam incomodados,

é feio demais, é gordo demais, não tem graça, é aborrecido demais, não deveria existir,

poderia ir ao cinema mas invade-o um enfado pelas histórias todas a que todos estão habituados,

poderia ir à praia mas não suporta esse mundo de movimento, de prazer, gente a falar e a sorrir,

poderia passear mas o peso de ter de se mexer deixa todos os seus músculos extenuados,

poderia se matar mas até para isso é preciso decisão e falta-lhe o desejo de tão-só se destruir.

 

Chamar o canalizador – passarão seis meses mesmo com bacias e baldes que dispor por todo o lado.

Comprar na internet – passará um ano antes de congregar forças para carregar na compra do produto.

Candidatar-se a um curso – talvez um dia, pela náusea arrastado, se estiver mesmo muito pressionado.

Mobília para a casa – talvez consiga deslocar-se para a adquirir alguns tempos antes de morrer.

 

A cabeça começa a doer em locais insólitos, de um lado, de esguelha, de forma estranha.

Não apetece conversar, nem apetece sequer ver filmes, não apetece pensar, não apetece mexer,

apetece morrer porque apetece imediatamente desaparecer, não existir, nunca ter existido,

sem ter de se matar, sem ter de agir, banir de todos a lembrança, banir o sequer ter sido.

 

Álcool? decerto. Barbitúricos para dormir e aumentar a depressão.

Antidepressivos para a vida ser suportável algum tempo cada dia.

Drogas para acalmar, para alucinar, para produzir euforia.

E qualquer abstinência a gerar tonturas, ansiedade, irritação.

 

E acima de tudo e em tudo, o peso que por todo o lado nunca deixa de pesar,

a abertura vazia a todas as possibilidades, ausência do possível a cada instante,

tudo o que esperam de mim e não farei, tudo o que eu me não cesso de acusar,

incapacidade absoluta de ser algo, em tudo fracasso, angústia constante. 

 

Tens quem gosta de ti, tens o futuro à tua frente, mas o que é que queres mais,

és um egoísta que não considera os outros e não faz um esforço para ser mais positivo,

és um resto, um monte de merda, com essa atitude, deverias ter vergonha de existir,

e tenho, vergonha bastante para me ocultar para sempre e ser para sempre destrutivo.

 

Sentir falta dos outros e não suportá-los se aparecem,

ninguém quer saber de mim, comigo, não há quem não se farte,

mas porque não desaparece esta gente, porque não me esquecem,

culpam-me de tudo, mesmo se lhes fizesse o favor e me matasse...

 

E bem no fundo persistente e inabalável esta tristeza,

como se olhasse para a destruição do mundo inteiro,

e só esse sentimento ainda mantém a inteireza,

e só esse sentimento é, de facto, verdadeiro.

 

Precisará de um beijo, de um braço, de um ouvido?

Precisará de psicoterapia, de mais fármacos ainda?

Precisará de namorado ou namorada, esposa ou marido?

De ir ao médium ou ao bruxo? Que mais precisará se isto não finda?

 

A pouco e pouco, toda a gente dele se cansa,

deixado na sua quase vida de impotência,

e, distantes, julgam, quase passa por alívio

o que mais não é do que a sua desistência.

 

E a ele mesmo invade cada vez mais a desistência

não só dos outros, de conforto, de prazer,

mas tão simplesmente da sua existência,

fechar os olhos, fechar a vida, adormecer...


Talvez seja verdade que só existem sonhos para satisfazer desejos reprimidos

porque o depressivo nem sonhos tem, dorme porque ao dormir se torna nada,

o próprio dormir é o único objeto de desejo que mantém, eternamente sem nada na consciência,

sem consciência sequer de si ou de existir ou ter desejo ou medo, nunca chegar a madrugada

numa noite eterna de mente ou alma, sem dar conta de imagem, fantasia ou existência.

 

Acordar para sentir a náusea toda de existir e não sonhar sequer como reagir.

Como o vazio pode ser tão pesado e concentrar-se todo no meu peito?

Para onde? para onde? onde de si se desfazer? para onde poder de si fugir?

Como pode ser eu ser tão insuportável? Terei alguma culpa? Terei algum defeito?

Encarar-se a si mesmo como um aparelho estragado, anomalia, para nada servir,

um homúnculo estropiado, um montão, sem futuro a construir, todo o projeto desfeito,

ele que tudo tinha e poderia fazer tudo, afinal um falhanço, uma desilusão,

para todos um incómodo, para todos desagrado, para todos frustração.

 

Na indolência e na satisfação, as forças da luta pela sobrevivência,

sem nada a que se aplicar, tornam-se poderes de autodestruição.

Nem vontade, nem desejo, nem força sequer para um músculo mover,

um pressionante vazio sempre a crescer e, como puro efeito do cansaço, 

querer acabar o sofrimento, sem esforço ou ação, desaparecer.

 

Eis o fruto do mundo de desenvolvimento, de abastança, de fruição,

ter, no fim, inveja de K. que alguém matou como um cão...[1]


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, IV, petrificação, 3ª ed., pp. 173-176. 


[1] Referência ao final do Processo de Kafka.

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