Invade, pouco a pouco, o depressivo uma ausência não só de vontade, mas de desejo,
a não ser de sono, cada vez
mais contínuo e frequente até já pouco se acordar
ou ficar acordado sem força
para abrir os olhos, sem força para querer se levantar,
um avassalador cansaço à
mínima ação ou apenas ao simples facto de a intencionar,
e talvez, em alguns, alguma
fome, embora mais provável seja que aquilo que consome
seja tentativa de preencher
vazio de alguma forma sem sentir necessidade do que come,
mesmo que possa comer cada
vez mais só para entreter-se, boca a fuçar, olhos vazados.
A pouco e pouco, sai o
menos que puder, lixo e compras, trabalho se tiver, a vida some.
Pensa ir ao café mas acaba
por não ir, todos o julgariam a mais, ficariam incomodados,
é feio demais, é gordo
demais, não tem graça, é aborrecido demais, não deveria existir,
poderia ir ao cinema mas
invade-o um enfado pelas histórias todas a que todos estão habituados,
poderia ir à praia mas não
suporta esse mundo de movimento, de prazer, gente a falar e a sorrir,
poderia passear mas o peso
de ter de se mexer deixa todos os seus músculos extenuados,
poderia se matar mas até
para isso é preciso decisão e falta-lhe o desejo de tão-só se destruir.
Chamar o canalizador –
passarão seis meses mesmo com bacias e baldes que dispor por todo o lado.
Comprar na internet –
passará um ano antes de congregar forças para carregar na compra do produto.
Candidatar-se a um curso –
talvez um dia, pela náusea arrastado, se estiver mesmo muito pressionado.
Mobília para a casa –
talvez consiga deslocar-se para a adquirir alguns tempos antes de morrer.
A cabeça começa a doer em
locais insólitos, de um lado, de esguelha, de forma estranha.
Não apetece conversar, nem
apetece sequer ver filmes, não apetece pensar, não apetece mexer,
apetece morrer porque
apetece imediatamente desaparecer, não existir, nunca ter existido,
sem ter de se matar, sem
ter de agir, banir de todos a lembrança, banir o sequer ter sido.
Álcool? decerto.
Barbitúricos para dormir e aumentar a depressão.
Antidepressivos para a vida
ser suportável algum tempo cada dia.
Drogas
para acalmar, para alucinar, para produzir euforia.
E
qualquer abstinência a gerar tonturas, ansiedade, irritação.
E acima de tudo e em tudo,
o peso que por todo o lado nunca deixa de pesar,
a abertura vazia a todas as
possibilidades, ausência do possível a cada instante,
tudo o que esperam de mim e
não farei, tudo o que eu me não cesso de acusar,
incapacidade absoluta de
ser algo, em tudo fracasso, angústia constante.
Tens quem gosta de ti, tens
o futuro à tua frente, mas o que é que queres mais,
és um egoísta que não
considera os outros e não faz um esforço para ser mais positivo,
és um resto, um monte de
merda, com essa atitude, deverias ter vergonha de existir,
e tenho, vergonha bastante
para me ocultar para sempre e ser para sempre destrutivo.
Sentir
falta dos outros e não suportá-los se aparecem,
ninguém
quer saber de mim, comigo, não há quem não se farte,
mas porque não desaparece
esta gente, porque não me esquecem,
culpam-me de tudo, mesmo se
lhes fizesse o favor e me matasse...
E
bem no fundo persistente e inabalável esta tristeza,
como
se olhasse para a destruição do mundo inteiro,
e
só esse sentimento ainda mantém a inteireza,
e
só esse sentimento é, de facto, verdadeiro.
Precisará
de um beijo, de um braço, de um ouvido?
Precisará
de psicoterapia, de mais fármacos ainda?
Precisará
de namorado ou namorada, esposa ou marido?
De ir ao médium ou ao bruxo? Que mais precisará se
isto não finda?
A
pouco e pouco, toda a gente dele se cansa,
deixado
na sua quase vida de impotência,
e,
distantes, julgam, quase passa por alívio
o
que mais não é do que a sua desistência.
E
a ele mesmo invade cada vez mais a desistência
não
só dos outros, de conforto, de prazer,
mas
tão simplesmente da sua existência,
fechar
os olhos, fechar a vida, adormecer...
Talvez seja verdade que só existem sonhos para satisfazer desejos reprimidos
porque o
depressivo nem sonhos tem, dorme porque ao dormir se torna nada,
o próprio dormir é o único
objeto de desejo que mantém, eternamente sem nada na consciência,
sem consciência sequer de
si ou de existir ou ter desejo ou medo, nunca chegar a madrugada
numa noite eterna de mente
ou alma, sem dar conta de imagem, fantasia ou existência.
Acordar para sentir a náusea toda de existir e não sonhar sequer como reagir.
Como
o vazio pode ser tão pesado e concentrar-se todo no meu peito?
Para onde? para onde? onde
de si se desfazer? para onde poder de si fugir?
Como pode ser eu ser tão
insuportável? Terei alguma culpa? Terei algum defeito?
Encarar-se a si mesmo como
um aparelho estragado, anomalia, para nada servir,
um homúnculo estropiado, um
montão, sem futuro a construir, todo o projeto desfeito,
ele que tudo tinha e
poderia fazer tudo, afinal um falhanço, uma desilusão,
para todos um incómodo,
para todos desagrado, para todos frustração.
Na indolência e na
satisfação, as forças da luta pela sobrevivência,
sem nada a que se aplicar,
tornam-se poderes de autodestruição.
Nem vontade, nem desejo,
nem força sequer para um músculo mover,
um pressionante vazio
sempre a crescer e, como puro efeito do cansaço,
querer
acabar o sofrimento, sem esforço ou ação, desaparecer.
Eis o fruto do mundo de
desenvolvimento, de abastança, de fruição,
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