"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

terça-feira, 1 de março de 2022

Patetinhas se acotovelam e competem nos ecrãs


Patetinhas se acotovelam e competem nos ecrãs

esfuziantes com a vaidade assim saciada

e anunciam a vitória de luminosos amanhãs

erguida sobre a hostil e alheia derrocada

Brandem como sabres princípios e ideais

e sorriem satisfeitos a cada nova tirada

exceto nas profundas indignações morais

guardadas sempre para os odiados rivais

cuja frustração está garantida e patenteada

E, entretanto, muge-se mais umas lágrimas

por despojados e assustados e mártires

com a sorte rara de seu infortúnio ser noticiado

estimulando o contínuo fluir das emoções

do coletivo já pela anterior peste treinado

garantindo o silenciamento de oposições

e o mental alistamento em cada lado

A tempestade está perto, mas distante

e ninguém por aqui crê no seu alcance

Um patetinha cala-se enfim com ar pedante

outro insta a que a retaliação avance

Enfileiram-se os dignatários da procissão

gente importante e de muita consideração

para o momento que se sabe histórico

nunca se sabe se para bem ou para mal

pois é sempre memorável o rito folclórico

seja de batizado, casamento ou funeral

e o que importa acima de tudo é aparecer

com a pose adequada para os que estão a ver

 

O entusiasmo pateta antecede a marcha fúnebre

como um carnaval se encerra com as cinzas

Que quaresma restará ainda ao homem

no inverno venenoso que comutará a primavera?

Atiça-se a besta encurralada, como que a brincar

com o prazer de vê-la a descontrolar-se

e alegam-se direitos absolutos inalienáveis

antes das ferozes garras deceparem

e degolarem e carbonizarem o uníssono protesto

Pudessem sobreviver na desolação

doentes e deformados pela invisível maldição

para agarrar os crânios de seus filhos

destacados e calcinados entre poeira e destroços

para lhes ensinar os direitos eternamente imprescindíveis

 

Ninguém tem direitos absolutos nenhuns a nada

e nunca preocupou privilegiados quem os não tinha

para garantir o modo de vida da aristocracia planetária

Existem apenas bestas insanas que por ganância ou medo

aceitam conceder às outras o direito de existir

Todos os direitos são apenas contratualização

a convenção que traz conveniências a todos

ou ao menos àqueles cuja força há ainda que temer

Só o delírio resultante de tanto privilégio

pôde fazer a turba indolente esquecer

que nenhum cadáver guarda quaisquer direitos

só lhe resta, se não petrificado, apodrecer

 

Anões saltitantes não conseguem conter a euforia

por julgarem o velho gigante moribundo

e tanto o incomodam e humilham e aviltam

que acabam esmagados por uma cega raiva

onde estarão então os protestos microscópicos

suas justas e tão mediáticas reivindicações

as razões aduzidas sem lábios para serem proferidas

tudo reduzido a uma única amálgama sangrenta

e o silêncio eterno das ruínas de uma espécie?

ouvir-se-ão em espetros, em fantasmas, no deserto

ecos distantes de ninguém por perto?

haverá entre vítimas e culpados um discrime

ou serão indiferenciados resíduos do crime?

 

A ordem que se queria resplandecente

ao menos no mundo da ostentação indolente

ofuscou a racionalidade que cada qual devia ter

Antes de princípios e direito e justiça

cuidar primeiro do que faz tremer

– como perdoar-nos ter feito existir filhos

para, antes de fruto, em flor, os ver morrer?

 

Mas nem os remorsos encontrarão algum lugar

a consciência humana para sempre olvidada

De tanto que procuraram purificar e cancelar

garantirão que seja a própria espécie cancelada

– e não é ela a mãe de todo o abuso

toda a discriminação, preconceito e violência?

Enquanto aumentava por todo o lado a vozearia

não progredia cada vez mais a indecência

da agressão de cada canto que no planeta havia?

Virá, assim, a ter afinal o que merecia

a praga insana que se provoca e atiça

para por si enfim, sem querer, fazer justiça

 

Entreguemo-nos às mãos cruéis do algoz

a causa de tal possibilidade somos nós

 

© Joaquim Lúcio, 1/3/22, ressurreição, pp.236-238

1 comentário:

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