Patetinhas se acotovelam e competem nos ecrãs
esfuziantes com a vaidade assim saciada
e anunciam a vitória de luminosos amanhãs
erguida sobre a hostil e alheia derrocada
Brandem como sabres princípios e ideais
e sorriem satisfeitos a cada nova tirada
exceto nas profundas indignações morais
guardadas sempre para os odiados rivais
cuja frustração está garantida e patenteada
E, entretanto, muge-se mais umas lágrimas
por despojados e assustados e mártires
com a sorte rara de seu infortúnio ser noticiado
estimulando o contínuo fluir das emoções
do coletivo já pela anterior peste treinado
garantindo o silenciamento de oposições
e o mental alistamento em cada lado
A tempestade está perto, mas distante
e ninguém por aqui crê no seu alcance
Um patetinha cala-se enfim com ar pedante
outro insta a que a retaliação avance
Enfileiram-se os dignatários da procissão
gente importante e de muita consideração
para o momento que se sabe histórico
nunca se sabe se para bem ou para mal
pois é sempre memorável o rito folclórico
seja de batizado, casamento ou funeral
e o que importa acima de tudo é aparecer
com a pose adequada para os que estão a ver
O entusiasmo pateta antecede a marcha fúnebre
como um carnaval se encerra com as cinzas
Que quaresma restará ainda ao homem
no inverno venenoso que comutará a primavera?
Atiça-se a besta encurralada, como que a brincar
com o prazer de vê-la a descontrolar-se
e alegam-se direitos absolutos inalienáveis
antes das ferozes garras deceparem
e degolarem e carbonizarem o uníssono protesto
Pudessem sobreviver na desolação
doentes e deformados pela invisível maldição
para agarrar os crânios de seus filhos
destacados e calcinados entre poeira e destroços
para lhes ensinar os direitos eternamente imprescindíveis
Ninguém tem direitos absolutos nenhuns a nada
e nunca preocupou privilegiados quem os não tinha
para garantir o modo de vida da aristocracia planetária
Existem apenas bestas insanas que por ganância ou medo
aceitam conceder às outras o direito de existir
Todos os direitos são apenas contratualização
a convenção que traz conveniências a todos
ou ao menos àqueles cuja força há ainda que temer
Só o delírio resultante de tanto privilégio
pôde fazer a turba indolente esquecer
que nenhum cadáver guarda quaisquer direitos
só lhe resta, se não petrificado, apodrecer
Anões saltitantes não conseguem conter a euforia
por julgarem o velho gigante moribundo
e tanto o incomodam e humilham e aviltam
que acabam esmagados por uma cega raiva
– onde
estarão então os protestos microscópicos
suas justas e tão mediáticas reivindicações
as razões aduzidas sem lábios para serem proferidas
tudo reduzido a uma única amálgama sangrenta
e o silêncio eterno das ruínas de uma espécie?
ouvir-se-ão em espetros, em fantasmas, no deserto
ecos distantes de ninguém por perto?
haverá entre vítimas e culpados um discrime
ou serão indiferenciados resíduos do crime?
A ordem que se queria resplandecente
ao menos no mundo da ostentação indolente
ofuscou a racionalidade que cada qual devia ter
Antes de princípios e direito e justiça
cuidar primeiro do que faz tremer
– como perdoar-nos ter feito existir filhos
para, antes de fruto, em flor, os ver morrer?
Mas nem os remorsos encontrarão algum lugar
a consciência humana para sempre olvidada
De tanto que procuraram purificar e cancelar
garantirão que seja a própria espécie cancelada
– e não é ela a mãe de todo o abuso
toda a discriminação, preconceito e violência?
Enquanto aumentava por todo o lado a vozearia
não progredia cada vez mais a indecência
da agressão de cada canto que no planeta havia?
Virá, assim, a ter afinal o que merecia
a praga insana que se provoca e atiça
para por si enfim, sem querer, fazer justiça
Entreguemo-nos às mãos cruéis do algoz
a causa de tal possibilidade somos nós
© Joaquim Lúcio, 1/3/22, ressurreição, pp.236-238
Bravo!
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