Escondo-me no escuro do calor
aninho-me sob a roupa contra o frio
afasto-me da incidência aqui da luz
aparto-me da busca insana pela festa
Fico assim seguro na rotina
conto-me a mentira do quotidiano
É certo que imagens se sucedem na retina
mas não causam prazer impacto ou dano
Retorno eterno à neurastenia
se se torna indiferente estar lançado
Desejo de eterna anestesia
dissolver sujeito em todo o lado
Aí me espraio sem comunicação
Aqui germinam silvas de maior inquietação
*
Se a natureza tem horror ao vácuo
é natural acabar por me mover
mas lembro-me de andar a passear
e não vejo porquê voltá-lo a fazer
O espetáculo do mundo é deprimente
e tende inexoravelmente para a deterioração
Tão-pouco atentar ao pormenor é diferente
só evidenciando mais a desconexão
Antes de morrer de vez a carne
morre pouco a pouco o sentido
que era afinal apenas presumido
Quanto mais o olhar estacava no passado
mais se desfazia o manto líquido sobre o sólido
que encobria a proliferação selvagem do insólito
*
No órgão tocava-se uma sonata de piano
A jovem cortava-se com uma tesoura de poda
Passava um homem a dizer que era estranho
Crianças estavam paradas dispostas numa roda
A assembleia dos neurónios decide a descarga
Ninguém percebe o que desencadeou o ataque
O rapaz queria o brinquedo que logo larga
Marca-se o golo com a indiferença da claque
Amanhã repetir-se-á a determinação causal
e será como sempre tudo igual tudo igual
tudo o que ocorrer continuará a ser alheio
As águas do mar invadirão as ruas
cogumelos eclodirão purgando o meio
suceder-se-ão luas após luas
*
A distância mais curta entre dois pontos é sempre curva
A uniformidade desfila exército a calcar o inusitado
A água saudável não deixa de ser turva
A diferença parece idêntica em todo o lado
O teatro do absurdo preenche o quotidiano
até o desconexo porque habitual parecer articulado
Padroniza-se a diferenciação por todo o ano
e face ao falhanço aldraba-se o resultado
A inquietação agrava-se nos interstícios
apesar da alienação do mundo inteiro
O alheamento concentra-se nos vícios
e deixa sempre aos outros o lance derradeiro
Há porém ravinas abismos precipícios
Talvez aí se encontre algo verdadeiro
*
A única matriz é desejar matriz
proibir o caos de tudo em volta
oferecer receitas para ser feliz
silenciar a possibilidade de revolta
A vigilância pela regularidade é opressiva
forja a norma sem qualquer enunciado
mas a génese é na verdade subjetiva
radica no ser-se indivíduo apartado
Afinal urge acalmar a inquietação
reconduzir a cisão à conformidade
fornecer uma fraude de inclusão
Tudo enfim passa a ser o mesmo
uma sopa de massa sem vontade
triturar a carne em torresmo
© Joaquim Lúcio, 15/8/2024