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O renascido acordou com o barulho de um berbequim a furar
uma parede. Seguiu-se um festival de percussão. Lá fora, diversas pessoas
tagarelavam o mais alto que podiam. O carro do lixo ajudou à festa. Um vizinho
resolveu abafar o ruído com uma pimbalhada qualquer a altos berros. Um
funcionário autárquico começou a aparar eletricamente a relva próxima. Uma
vizinha pôs‑se a falar da janela para a rua, para uma amiga, aos gritos, ambas
conseguindo suplantar o aparador. Não conseguiu aguentar mais e saiu, tentando
afastar-se o suficiente de tanto ruído. Não conseguiu. Numa esplanada, um tipo
queria partilhar o seu gosto de heavy metal; num parque, um grupo
dançava ao ritmo de sucessos latinos; num café, era a vez da televisão com o volume
altíssimo; num posto de saúde, todos tinham de suportar o programa da manhã da
estação de rádio mais histriónica; numa cervejaria, estavam a assistir um jogo
de futebol, berrando a cada pormenor de uma jogada, já para nem falar dos golos;
numa biblioteca, jovens reuniam-se à volta de computadores, outros em trabalho
de grupo, de forma tão agitada que tornava impossível qualquer leitura; num
restaurante, bastavam as conversas dos comensais e dos pedidos e saídas de
pratos dos empregados para criar um barreira única e impenetrável de som; e,
por toda a parte, toda a gente berrava, não por estar zangada, mas para mostrar
aos outros estar alegre, para exteriorizar boa disposição; dos carros saía todo
o tipo de enlatados musicais; os arranques e travagens dos autocarros acompanhavam
todos os contributos; a passagem de aviões marcava o contraponto; inúmeros
ruídos de música, telenovelas, discussões domésticas, obras e mudanças de todos
os tipos a sair por portas e janelas completavam o concerto. E não valia a pena
sair do subúrbio. Sabia muito bem que tudo seria bem pior no centro da cidade.
Alguns dos jovens, aliás igualmente barulhentos, foram encontrá‑lo
num recanto que o renascido considerou um pouco menos ruidoso. A visível tensão
fez os jovens interrogá-lo.
A sociabilidade traduz-se em
primeiro e último lugar
no imperativo categórico do
barulho
Tem de se fazer muito a
propósito de tudo e de nada
com muita gesticulação e
diversas inflexões
A gente acima de tudo nunca
quer ser confrontada
com o vazio do silêncio e o
peso das suas solidões
Por isso, a constante
vigilância contra a sua possibilidade
só deprimido, só doente, só
suicidário é possível o silêncio
é sempre melhor ir importunar
o taciturno
interromper tal comportamento
abstruso e destrutivo
pudera ser proibido até o
próprio sossego noturno
nunca se sabe que
consequência provirá da falta de ruído
Há que criar uma barreira
constante à consciência
uma muralha de som sistematicamente
produzida
pelo próprio e pelos outros,
por todos e suas máquinas
uma barragem de artilharia contra
qualquer questão
um fingimento constante de
festejo sobre a agonia
que crie um circo
estereofónico travestido de alegria
Há que garantir que não
acorda o sentimento do abismo
que a mente se não debruça
sobre a sua origem
que o sujeito não se vira para
o que foi separado
e, espreitando a cisão, seja
tomado de vertigem
que não se dilacera na
insuportabilidade do olhar
e na impossibilidade de ver o
que busca captar
Há que proibir que o
pensamento pergunte para quê
que interrogue o próprio
sentido de estar lançado
que intente alcançar a fonte,
indagar porquê
que se fragmente no caos sem
nexo do intencionado
que permita a ansiedade, a
angústia, a tortura
que inicie o percurso que
desemboca na loucura
Mas há também que ocultar os
ritmos da natureza
os sons do roçar das folhas,
o estridular de insetos
o marulhar de miríades de
gotas, o ressoar do trovão
chuva a cair na terra,
chamamentos, trinados, trajetos
bichos a ratar madeira, vento
a assobiar em claustros
o planeta inteiro a vibrar
sob o silêncio dos astros
por se temer acordar e ser só
um elo da vida
menos relevante que barata,
erva, bactéria
anomalia ridícula, efémera,
que será esquecida
como buraco na trilha,
bloqueio de uma artéria
perturbação instantânea do
fluxo do devir
avaria passageira, piada que
nem faz rir
A mesma barragem é armadura e
é arma
armadura contra o terror da
sua própria condição
agressão global contra o meio
de que depende
e que visa usar para lhe
fornecer distrações
para constantemente evitar
olhar para o vácuo
recriando desejo com sempre novas
obsessões
Para não pensar em nada, em
si, no todo
para não se correr risco de
suspensão da distração
é preciso exteriorizar-se sob
a forma de ruído
fingir constantemente estar a
ser em relação
ou, em caso de emergência,
substituir pelo ecrã
a agitação pública que
recomeçará pela manhã
A vociferação nas redes e
mensagens
é a forma derradeira e
perfeita de evitar silêncio
ocupando a mente com os sons
imaginados
análogos aos emitidos para o
exterior
fornecendo uma barreira inexpugnável
para a reflexão do hiato
insuperável
Para impedir confronto com
vazio e pleno
como um saco virado para
fora, do avesso
atira-se esse vácuo para o
exterior
e polui-se com ele o ambiente
garantindo que ele enfim
pareça cheio
mesmo que seja de sujidade e
de receio
Há que tornar o planeta
inteiro um ruído
intenso e colossal sem
princípio ou fim
de forma a impedir o desafio
de um sentido
e a denúncia do desespero do chinfrim
instaurador do império de
caos global
apresentado como nova ordem
mundial
Babilónia tornou-se virtual e
planetária
e materializa-se no fragor da
agressão
com que mobiliza todos os
recursos
para assegurar a alienada
perpetuação
da algazarra espalhafatosa
que desvia
olhar e escuta da intrínseca
aflição e agonia
Permitam-me ficar um pouco em
silêncio
já chegam as fontes de
barulho
– melhor seria existir entre
destroços
e não ser mais que uma parte
do entulho
Com tal pedido, após tão grande ataque ao ruído, os próprios
jovens afastaram-se em silêncio, mesmo não podendo calar o bulício envolvente.
O renascido ficou a vê-los a afastarem-se…
E ainda assim não procuro um
ermo
para continuar o meu caminho
ainda assim à relação não
ponho termo
não deixo os outros, não
estou sozinho…
Joaquim Lúcio, ressurreição, KDP, 2022, pp. 245-247.
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