Desoladas ruínas de civilização arcaica
erguem
torres num hierático mistério,
estéril,
pardo, seco, poeirento e desértico
em direção a
um sol de inclemente emissão fotovoltaica.
E o suor que
cola a camisa ao meu corpo
não encontra
esperança alguma no horizonte.
Só desespero
se dá ao meu olhar absorto
na presença ressequida de uma
milenar resistência de alguns anos,
fazendo do
subúrbio imagem alucinada dos arcanos
ou
petrificação maldita devastada
de uma
cidade que a si mesma se corroeu e destruiu,
até derrocar
em paredes esboroadas, pó e nada
sem
conseguir deter a luta provocada
por um
qualquer absurdo e olvidado desafio.
Hoje,
constrói-se já à partida
aquilo que outrora era
catástrofe, saque e destruição, termo, fim,
como se de
nós já só fosse possível
engenharia
do desastre, estética pós-apocalíptica,
arquitetura
de esqueletos, armações, espetros
descolorados
e agressivos resultantes
de
bombardeamento que ninguém viu.
Diz-se que
uma multidão habita estas desérticas ruínas,
uma multidão
humana
– diz-se e
eu não acredito –
se é próprio
do homem poeticamente habitar a terra,
que seres
são estes que fuçam na cidade
incapazes de
articular linguagem
ou conceber
até nos atos qualquer beleza?
não foi
preciso chegar uma bárbara horda devastadora,
a cidade foi
já construída devastada
pronta para
receber a grosseria e a manada
que, como
nada encontra aqui para saquear,
vai para
outro lado até à exaustão labutar
ou, tão
brutalmente como se despeja aqui,
vai
amontoar-se junto ao mar, para a costa esturricar.
E à noite é
habitada, sim, mas por ruídos,
por sinistro
ranger indeterminável,
ecos
crípticos de sombras irreais,
vozes
confusas que largam declarações
sem
articulação ou contexto
e outras
vozes mecânicas eletrónicas,
arrepiantes
não fora o hábito,
inquietantes
não fora persistência,
pânico
tornado aborrecimento por inércia.
Viver num
apartamento vinte anos
e não saber
um único nome de um vizinho.
Vizinhos?
Mais vizinho o desconhecido que se cola ao corpo
no percurso
de metro ou de comboio,
mais vizinha
a barata fugidia
ou a
ratazana esgueirando-se à sarjeta,
os chatos
que se acumulam na virilha
ou os
lepismas nos montes de papel.
E, por isso,
eu, desenraizado,
estou aqui
bem, não podia estar melhor,
percorro a
existência sem a incomodidade de outros,
passo por
eles mas não há encontros
nesta
loucura de massificar a solidão
até cada
qual se tornar
uma informe
substância de rancor e frustração.
Por vezes,
estalam nos alvéolos infinitos
discussões,
destruições, agressões, lutas;
por vezes,
grita aflitivamente numa viela
uma mulher
assaltada, agredida, violada;
por vezes,
ouvem-se na noite passadas corridas
de criminoso
ou vítima ou outrem,
pouco
importa, ninguém liga nenhuma,
todos fingem
não ouvir,
aumentam o
volume para o ruído confundir;
se alguém
vai à janela sem grande convicção
ou telefona
para entreter a rotina da polícia,
esquece-se
rapidamente da razão
e volta à
sua habitual rotina e inação;
claro,
exceto se for uma travagem ou impacto,
um desastre
de um automóvel contra um prédio,
suicídio lançado
de um andar mais alto,
atropelamento
e fuga, que, de imediato,
tudo assoma
às janelas como zombies sedentos
para ver
algum sangue vivo enfim jorrar
para lá dos
seus hábitos pardacentos.
Finjo berrar
por alguém para ouvir o eco
e nem um cão
se digna a ladrar,
talvez pelo
calor inclemente
que não
deixa energia senão para aguentar.
Embrutecidos,
não só pelo trabalho
mas também
pela preguiça,
as entidades
anónimas não existem,
limitam a
entreter-se pela vida,
sem ser
necessário teletela
para vigiar
atividades.
Cada qual
está isolado,
ainda mais
se vive em família,
esse antro de agressividade e
rancor e ressentimento instituídos
onde estar
só não protege de ser-se violentado,
cada qual
está entregue ao seu absurdo
e, nele, vai
embotando cada vez mais o pensamento
por ele
nunca servir para algo transmitir,
exceto
escárnio, despeito e ofensas,
cada qual
vai-se tornando um pequeno monstro,
anulado no
seu total isolamento,
mas
preparado a qualquer momento,
se houver
quem ou o que congregue um dia os monstros,
para tudo
arrasar numa vaga de ódio e medo
que vingará seu longo ostracismo ou degredo.
E então não serão só estes subúrbios dormitórios
que lembrarão ruínas já passadas,
não ficarão ilesos quaisquer territórios
das classes protegidas, sobranceiras, abonadas
e a fúria só será cumplicemente limitada
pela saciação que for concedida
à turba demente e descontrolada
seviciando os outros de forma desmedida.
Mesmo se verdadeiramente habitada,
esta cidade está por essência condenada,
é já hoje o esboroamento de si própria,
já hoje alienígena, estranha
a qualquer coisa que se diga humana,
só podendo ser ressuscitada
sob a forma de uma horda de violência
que encerrará não a sua vida, mas a sua
inexistência,
no puro nada da consciência
do arrebatador encarniçamento da demência.
Ruínas de ausência de civilização
não nos contam histórias da violência que passou,
anunciam na brutalidade do betão
os frutos de quanta raiva se recalcou
em cada frustrada solidão,
um futuro de descontrolada agressão
que imporá uma ordem de arbitrariedade e opressão.
Torres hediondas rodeiam-me como sinistros agouros,
no meio do calor abafado me arrepio,
não invejo a sorte dos vindouros,
o sol abrasador transmuta-se sombrio...
Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, vol. III, terra, 1ª ed., Madrid, Bubok, 2019; 3ª ed., KDP, 2022, pp. 262-266.