"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Se o teu cheiro fosse habitação

Se o teu cheiro fosse habitação

lá dormiria eternamente

sem desejo de sair até para a comida

e morreria assim dormente

sem me aperceber que meu corpo definhava

até à consequência de uma morte abençoada.

Se o teu cheiro fosse habitação

lá moraria até a minha dissolução

em moléculas incapazes de lembrança,

amnésica bem-aventurança,

de quem era antes de morar-te

e nesse cheiro encontrar meu baluarte.

Se o teu cheiro fosse habitação

nada mais no mundo poderia eu habitar

porque nesse cheiro se concretizaria

tudo o que procurei em cada mulher encontrar

e só nele se realizaria

o que em cada uma tentava amar.

Se o teu cheiro fosse habitação

antes ele existir e eu não

não mais teria consciência de mim mesmo

não mais haveria eu e relação ao outro

só tendo consciência do que me envolveria

e no qual me dissolveria em fusão

até me aniquilar na sua absorção.

Se o teu cheiro fosse habitação... 


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, vol. II, abertura, 1ª ed., Madrid, Bubok, 2019; 3ª ed., KDP, 2022, p. 99.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Desoladas ruínas

 

Desoladas ruínas de civilização arcaica

erguem torres num hierático mistério,

estéril, pardo, seco, poeirento e desértico

em direção a um sol de inclemente emissão fotovoltaica.

 

E o suor que cola a camisa ao meu corpo

não encontra esperança alguma no horizonte.

Só desespero se dá ao meu olhar absorto

na presença ressequida de uma milenar resistência de alguns anos,

fazendo do subúrbio imagem alucinada dos arcanos

ou petrificação maldita devastada

de uma cidade que a si mesma se corroeu e destruiu,

até derrocar em paredes esboroadas, pó e nada

sem conseguir deter a luta provocada

por um qualquer absurdo e olvidado desafio.

 

Hoje, constrói-se já à partida

aquilo que outrora era catástrofe, saque e destruição, termo, fim,

como se de nós já só fosse possível

engenharia do desastre, estética pós-apocalíptica,

arquitetura de esqueletos, armações, espetros

descolorados e agressivos resultantes

de bombardeamento que ninguém viu.

 

Diz-se que uma multidão habita estas desérticas ruínas,

uma multidão humana

– diz-se e eu não acredito –

se é próprio do homem poeticamente habitar a terra,

que seres são estes que fuçam na cidade

incapazes de articular linguagem

ou conceber até nos atos qualquer beleza?

não foi preciso chegar uma bárbara horda devastadora,

a cidade foi já construída devastada

pronta para receber a grosseria e a manada

que, como nada encontra aqui para saquear,

vai para outro lado até à exaustão labutar

ou, tão brutalmente como se despeja aqui,

vai amontoar-se junto ao mar, para a costa esturricar.

 

E à noite é habitada, sim, mas por ruídos,

por sinistro ranger indeterminável,

ecos crípticos de sombras irreais,

vozes confusas que largam declarações

sem articulação ou contexto

e outras vozes mecânicas eletrónicas,

arrepiantes não fora o hábito,

inquietantes não fora persistência,

pânico tornado aborrecimento por inércia.

 

Viver num apartamento vinte anos

e não saber um único nome de um vizinho.

Vizinhos? Mais vizinho o desconhecido que se cola ao corpo

no percurso de metro ou de comboio,

mais vizinha a barata fugidia

ou a ratazana esgueirando-se à sarjeta,

os chatos que se acumulam na virilha

ou os lepismas nos montes de papel.

 

E, por isso, eu, desenraizado,

estou aqui bem, não podia estar melhor,

percorro a existência sem a incomodidade de outros,

passo por eles mas não há encontros

nesta loucura de massificar a solidão

até cada qual se tornar

uma informe substância de rancor e frustração.

  

Por vezes, estalam nos alvéolos infinitos

discussões, destruições, agressões, lutas;

por vezes, grita aflitivamente numa viela

uma mulher assaltada, agredida, violada;

por vezes, ouvem-se na noite passadas corridas

de criminoso ou vítima ou outrem,

pouco importa, ninguém liga nenhuma,

todos fingem não ouvir,

aumentam o volume para o ruído confundir;

se alguém vai à janela sem grande convicção

ou telefona para entreter a rotina da polícia,

esquece-se rapidamente da razão

e volta à sua habitual rotina e inação;

claro, exceto se for uma travagem ou impacto,

um desastre de um automóvel contra um prédio,

suicídio lançado de um andar mais alto,

atropelamento e fuga, que, de imediato,

tudo assoma às janelas como zombies sedentos

para ver algum sangue vivo enfim jorrar

para lá dos seus hábitos pardacentos.

 

Finjo berrar por alguém para ouvir o eco

e nem um cão se digna a ladrar,

talvez pelo calor inclemente

que não deixa energia senão para aguentar.

 

Embrutecidos, não só pelo trabalho

mas também pela preguiça,

as entidades anónimas não existem,

limitam a entreter-se pela vida,

sem ser necessário teletela

para vigiar atividades.

  

Cada qual está isolado,

ainda mais se vive em família,

esse antro de agressividade e rancor e ressentimento instituídos

onde estar só não protege de ser-se violentado,

cada qual está entregue ao seu absurdo

e, nele, vai embotando cada vez mais o pensamento

por ele nunca servir para algo transmitir,

exceto escárnio, despeito e ofensas,

cada qual vai-se tornando um pequeno monstro,

anulado no seu total isolamento,

mas preparado a qualquer momento,

se houver quem ou o que congregue um dia os monstros,

para tudo arrasar numa vaga de ódio e medo

que vingará seu longo ostracismo ou degredo.

 

E então não serão só estes subúrbios dormitórios

que lembrarão ruínas já passadas,

não ficarão ilesos quaisquer territórios

das classes protegidas, sobranceiras, abonadas

e a fúria só será cumplicemente limitada

pela saciação que for concedida

à turba demente e descontrolada

seviciando os outros de forma desmedida.

 

Mesmo se verdadeiramente habitada,

esta cidade está por essência condenada,

é já hoje o esboroamento de si própria,

já hoje alienígena, estranha

a qualquer coisa que se diga humana,

só podendo ser ressuscitada

sob a forma de uma horda de violência

que encerrará não a sua vida, mas a sua inexistência,

no puro nada da consciência

do arrebatador encarniçamento da demência.

 

Ruínas de ausência de civilização

não nos contam histórias da violência que passou,

anunciam na brutalidade do betão

os frutos de quanta raiva se recalcou

em cada frustrada solidão,

um futuro de descontrolada agressão

que imporá uma ordem de arbitrariedade e opressão.

  

Torres hediondas rodeiam-me como sinistros agouros,

no meio do calor abafado me arrepio,

não invejo a sorte dos vindouros,

o sol abrasador transmuta-se sombrio... 


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, vol. III, terra, 1ª ed., Madrid, Bubok, 2019; 3ª ed., KDP, 2022, pp. 262-266.


sexta-feira, 7 de julho de 2023

O ruído

 65

         O renascido acordou com o barulho de um berbequim a furar uma parede. Seguiu-se um festival de percussão. Lá fora, diversas pessoas tagarelavam o mais alto que podiam. O carro do lixo ajudou à festa. Um vizinho resolveu abafar o ruído com uma pimbalhada qualquer a altos berros. Um funcionário autárquico começou a aparar eletricamente a relva próxima. Uma vizinha pôs‑se a falar da janela para a rua, para uma amiga, aos gritos, ambas conseguindo suplantar o aparador. Não conseguiu aguentar mais e saiu, tentando afastar-se o suficiente de tanto ruído. Não conseguiu. Numa esplanada, um tipo queria partilhar o seu gosto de heavy metal; num parque, um grupo dançava ao ritmo de sucessos latinos; num café, era a vez da televisão com o volume altíssimo; num posto de saúde, todos tinham de suportar o programa da manhã da estação de rádio mais histriónica; numa cervejaria, estavam a assistir um jogo de futebol, berrando a cada pormenor de uma jogada, já para nem falar dos golos; numa biblioteca, jovens reuniam-se à volta de computadores, outros em trabalho de grupo, de forma tão agitada que tornava impossível qualquer leitura; num restaurante, bastavam as conversas dos comensais e dos pedidos e saídas de pratos dos empregados para criar um barreira única e impenetrável de som; e, por toda a parte, toda a gente berrava, não por estar zangada, mas para mostrar aos outros estar alegre, para exteriorizar boa disposição; dos carros saía todo o tipo de enlatados musicais; os arranques e travagens dos autocarros acompanhavam todos os contributos; a passagem de aviões marcava o contraponto; inúmeros ruídos de música, telenovelas, discussões domésticas, obras e mudanças de todos os tipos a sair por portas e janelas completavam o concerto. E não valia a pena sair do subúrbio. Sabia muito bem que tudo seria bem pior no centro da cidade.

         Alguns dos jovens, aliás igualmente barulhentos, foram encontrá‑lo num recanto que o renascido considerou um pouco menos ruidoso. A visível tensão fez os jovens interrogá-lo.

 

A sociabilidade traduz-se em primeiro e último lugar

no imperativo categórico do barulho

Tem de se fazer muito a propósito de tudo e de nada

com muita gesticulação e diversas inflexões

A gente acima de tudo nunca quer ser confrontada

com o vazio do silêncio e o peso das suas solidões

 

Por isso, a constante vigilância contra a sua possibilidade

só deprimido, só doente, só suicidário é possível o silêncio

é sempre melhor ir importunar o taciturno

interromper tal comportamento abstruso e destrutivo

pudera ser proibido até o próprio sossego noturno

nunca se sabe que consequência provirá da falta de ruído

 

Há que criar uma barreira constante à consciência

uma muralha de som sistematicamente produzida

pelo próprio e pelos outros, por todos e suas máquinas

uma barragem de artilharia contra qualquer questão

um fingimento constante de festejo sobre a agonia

que crie um circo estereofónico travestido de alegria

 

Há que garantir que não acorda o sentimento do abismo

que a mente se não debruça sobre a sua origem

que o sujeito não se vira para o que foi separado

e, espreitando a cisão, seja tomado de vertigem

que não se dilacera na insuportabilidade do olhar

e na impossibilidade de ver o que busca captar

 

Há que proibir que o pensamento pergunte para quê

que interrogue o próprio sentido de estar lançado

que intente alcançar a fonte, indagar porquê

que se fragmente no caos sem nexo do intencionado

que permita a ansiedade, a angústia, a tortura

que inicie o percurso que desemboca na loucura  

 

Mas há também que ocultar os ritmos da natureza

os sons do roçar das folhas, o estridular de insetos

o marulhar de miríades de gotas, o ressoar do trovão

chuva a cair na terra, chamamentos, trinados, trajetos

bichos a ratar madeira, vento a assobiar em claustros

o planeta inteiro a vibrar sob o silêncio dos astros

 

por se temer acordar e ser só um elo da vida

menos relevante que barata, erva, bactéria

anomalia ridícula, efémera, que será esquecida

como buraco na trilha, bloqueio de uma artéria

perturbação instantânea do fluxo do devir

avaria passageira, piada que nem faz rir

 

A mesma barragem é armadura e é arma

armadura contra o terror da sua própria condição

agressão global contra o meio de que depende

e que visa usar para lhe fornecer distrações

para constantemente evitar olhar para o vácuo

recriando desejo com sempre novas obsessões

 

Para não pensar em nada, em si, no todo

para não se correr risco de suspensão da distração

é preciso exteriorizar-se sob a forma de ruído 

fingir constantemente estar a ser em relação

ou, em caso de emergência, substituir pelo ecrã

a agitação pública que recomeçará pela manhã

 

A vociferação nas redes e mensagens

é a forma derradeira e perfeita de evitar silêncio

ocupando a mente com os sons imaginados

análogos aos emitidos para o exterior

fornecendo uma barreira inexpugnável

para a reflexão do hiato insuperável

 

Para impedir confronto com vazio e pleno

como um saco virado para fora, do avesso

atira-se esse vácuo para o exterior

e polui-se com ele o ambiente

garantindo que ele enfim pareça cheio

mesmo que seja de sujidade e de receio

 

Há que tornar o planeta inteiro um ruído

intenso e colossal sem princípio ou fim

de forma a impedir o desafio de um sentido

e a denúncia do desespero do chinfrim

instaurador do império de caos global

apresentado como nova ordem mundial

 

Babilónia tornou-se virtual e planetária

e materializa-se no fragor da agressão

com que mobiliza todos os recursos

para assegurar a alienada perpetuação

da algazarra espalhafatosa que desvia

olhar e escuta da intrínseca aflição e agonia

 

Permitam-me ficar um pouco em silêncio

já chegam as fontes de barulho

­– melhor seria existir entre destroços

e não ser mais que uma parte do entulho

 

         Com tal pedido, após tão grande ataque ao ruído, os próprios jovens afastaram-se em silêncio, mesmo não podendo calar o bulício envolvente. O renascido ficou a vê-los a afastarem-se…

 

E ainda assim não procuro um ermo

para continuar o meu caminho

ainda assim à relação não ponho termo

não deixo os outros, não estou sozinho…


Joaquim Lúcio, ressurreição, KDP, 2022, pp. 245-247.

domingo, 19 de fevereiro de 2023

Invade, pouco a pouco, o depressivo

Invade, pouco a pouco, o depressivo uma ausência não só de vontade, mas de desejo,

a não ser de sono, cada vez mais contínuo e frequente até já pouco se acordar

ou ficar acordado sem força para abrir os olhos, sem força para querer se levantar,

um avassalador cansaço à mínima ação ou apenas ao simples facto de a intencionar,

e talvez, em alguns, alguma fome, embora mais provável seja que aquilo que consome

seja tentativa de preencher vazio de alguma forma sem sentir necessidade do que come,

mesmo que possa comer cada vez mais só para entreter-se, boca a fuçar, olhos vazados.

A pouco e pouco, sai o menos que puder, lixo e compras, trabalho se tiver, a vida some.

Pensa ir ao café mas acaba por não ir, todos o julgariam a mais, ficariam incomodados,

é feio demais, é gordo demais, não tem graça, é aborrecido demais, não deveria existir,

poderia ir ao cinema mas invade-o um enfado pelas histórias todas a que todos estão habituados,

poderia ir à praia mas não suporta esse mundo de movimento, de prazer, gente a falar e a sorrir,

poderia passear mas o peso de ter de se mexer deixa todos os seus músculos extenuados,

poderia se matar mas até para isso é preciso decisão e falta-lhe o desejo de tão-só se destruir.

 

Chamar o canalizador – passarão seis meses mesmo com bacias e baldes que dispor por todo o lado.

Comprar na internet – passará um ano antes de congregar forças para carregar na compra do produto.

Candidatar-se a um curso – talvez um dia, pela náusea arrastado, se estiver mesmo muito pressionado.

Mobília para a casa – talvez consiga deslocar-se para a adquirir alguns tempos antes de morrer.

 

A cabeça começa a doer em locais insólitos, de um lado, de esguelha, de forma estranha.

Não apetece conversar, nem apetece sequer ver filmes, não apetece pensar, não apetece mexer,

apetece morrer porque apetece imediatamente desaparecer, não existir, nunca ter existido,

sem ter de se matar, sem ter de agir, banir de todos a lembrança, banir o sequer ter sido.

 

Álcool? decerto. Barbitúricos para dormir e aumentar a depressão.

Antidepressivos para a vida ser suportável algum tempo cada dia.

Drogas para acalmar, para alucinar, para produzir euforia.

E qualquer abstinência a gerar tonturas, ansiedade, irritação.

 

E acima de tudo e em tudo, o peso que por todo o lado nunca deixa de pesar,

a abertura vazia a todas as possibilidades, ausência do possível a cada instante,

tudo o que esperam de mim e não farei, tudo o que eu me não cesso de acusar,

incapacidade absoluta de ser algo, em tudo fracasso, angústia constante. 

 

Tens quem gosta de ti, tens o futuro à tua frente, mas o que é que queres mais,

és um egoísta que não considera os outros e não faz um esforço para ser mais positivo,

és um resto, um monte de merda, com essa atitude, deverias ter vergonha de existir,

e tenho, vergonha bastante para me ocultar para sempre e ser para sempre destrutivo.

 

Sentir falta dos outros e não suportá-los se aparecem,

ninguém quer saber de mim, comigo, não há quem não se farte,

mas porque não desaparece esta gente, porque não me esquecem,

culpam-me de tudo, mesmo se lhes fizesse o favor e me matasse...

 

E bem no fundo persistente e inabalável esta tristeza,

como se olhasse para a destruição do mundo inteiro,

e só esse sentimento ainda mantém a inteireza,

e só esse sentimento é, de facto, verdadeiro.

 

Precisará de um beijo, de um braço, de um ouvido?

Precisará de psicoterapia, de mais fármacos ainda?

Precisará de namorado ou namorada, esposa ou marido?

De ir ao médium ou ao bruxo? Que mais precisará se isto não finda?

 

A pouco e pouco, toda a gente dele se cansa,

deixado na sua quase vida de impotência,

e, distantes, julgam, quase passa por alívio

o que mais não é do que a sua desistência.

 

E a ele mesmo invade cada vez mais a desistência

não só dos outros, de conforto, de prazer,

mas tão simplesmente da sua existência,

fechar os olhos, fechar a vida, adormecer...


Talvez seja verdade que só existem sonhos para satisfazer desejos reprimidos

porque o depressivo nem sonhos tem, dorme porque ao dormir se torna nada,

o próprio dormir é o único objeto de desejo que mantém, eternamente sem nada na consciência,

sem consciência sequer de si ou de existir ou ter desejo ou medo, nunca chegar a madrugada

numa noite eterna de mente ou alma, sem dar conta de imagem, fantasia ou existência.

 

Acordar para sentir a náusea toda de existir e não sonhar sequer como reagir.

Como o vazio pode ser tão pesado e concentrar-se todo no meu peito?

Para onde? para onde? onde de si se desfazer? para onde poder de si fugir?

Como pode ser eu ser tão insuportável? Terei alguma culpa? Terei algum defeito?

Encarar-se a si mesmo como um aparelho estragado, anomalia, para nada servir,

um homúnculo estropiado, um montão, sem futuro a construir, todo o projeto desfeito,

ele que tudo tinha e poderia fazer tudo, afinal um falhanço, uma desilusão,

para todos um incómodo, para todos desagrado, para todos frustração.

 

Na indolência e na satisfação, as forças da luta pela sobrevivência,

sem nada a que se aplicar, tornam-se poderes de autodestruição.

Nem vontade, nem desejo, nem força sequer para um músculo mover,

um pressionante vazio sempre a crescer e, como puro efeito do cansaço, 

querer acabar o sofrimento, sem esforço ou ação, desaparecer.

 

Eis o fruto do mundo de desenvolvimento, de abastança, de fruição,

ter, no fim, inveja de K. que alguém matou como um cão...[1]


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, IV, petrificação, 3ª ed., pp. 173-176. 


[1] Referência ao final do Processo de Kafka.

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Errata

 Errata de ressurreição

pág. 43 – 4ª estrofe, 3º verso, “habitual” substituído por “banal”;

pág. 121 - 7ª linha a contar do fim da página: eliminação da 2ª vírgula;

pág. 134 - final do 4º verso: eliminado o ponto;

pág. 138 - penúltima linha: "mas" substituído por "porém";

pág. 141 - no 4º verso da 2ª estrofe: "e" substituído por "por";

                no 6ª verso: "de" substituído por "a".

pág. 148 - no 28º verso: "materializado" substituído por "materializada";

pág. 212 – 8ª linha, acrescentada uma vírgula após “dantesco”;

pág. 221 - 1º parágrafo, linha 2: “estrela” substituído por “vedeta”;

               - 3º parágrafo, linha 19: "estudantil" substituído por "académica";

pág. 230 - 2º verso da última estrofe: "como" substituído por "com";

pág. 344 - 5ª linha: eliminado "entre";

pág. 352 - 8º verso do 2º soneto: "questão torna" substituído por "causa advém";

pág. 354 - 5ª linha do 2º parágrafo: eliminado "ele".


    Todas estas alterações já constam das atuais versões à venda. Em alguns casos, os leitores poderão ter versões com já algumas destas alterações feitas. Aqui, estão todas as alterações feitas desde a publicação inicial.

domingo, 5 de fevereiro de 2023

As redes sociais gritam a solidão

 76

As redes sociais gritam a solidão
mas não só
também a mutilação sofrida com o passar dos anos
o atropelamento pelo comboio do devir
e nuns as pernas ficaram mancas ou retorcidas
e só dão para rodar numa direção
ou foi atingida a cabeça e a boca deformada
só consegue proferir determinados sons
ou o pescoço anquilosado não se consegue virar
e é penoso estar a rodar constantemente
todo o tronco e cabeça até braços e pernas
e assim o melhor é deixar tudo ficar como já está
E essas entidades ficaram vivas após desastre
embora talvez seja discutível que é a vida
um olho sozinho a abrir e a fechar a pupila
só com pálpebras para ajudar a descansar
um bíceps protuberante após rotura definitiva do tendão
ostensivamente exibindo a masculinidade amputada
um lábio travestido de vagina com botox
perenemente reduzido a simbolização obscena
um dedo incapaz de voltar aos recessos habituais
mas mantendo ainda a sujidade acumulada de transatas investidas
e todos estão vivos, dir-se-iam sencientes
estes pedaços diminutos de seres completos
e continuam a ir para o trabalho e para a casa de banho
são hábitos, é difícil deixá-los só porque já só se é 
olho e bíceps e lábio e dedo
e estão até morte, se forem capazes de a morrer
confinados na sua fragmentação e isolamento de pedaços
e ficaram fixados numa só ideia, num só projeto, numa só obsessão
como um disco de vinil riscado quando tocado pela agulha
uma maquineta que peça partida faz repetir sempre o mesmo movimento
a mesma apresentação vezes sem conta ano após ano a fingir-se aula
a cena de telenovela que repete mil outras de mil outras
o monocórdico discurso político que já nem se sabe se diz algo novo
porque ninguém consegue ouvir outra coisa que não o rotineiro tom 
e todos petrificados nessa única mensagem
sem conseguirem dizer ou sequer pensar qualquer outra coisa
só com a companhia do sentimento de abandono
da absoluta, completa, inconfortável solidão
e é essa solidão que de facto grita desesperada
encravada no único discurso que consegue ter
buscando uma brecha nas paredes da cidade, do asilo, da prisão
ganindo, gemendo, berrando, protestando nas redes sociais
não a mensagem expressa, mas a sua terrível desolação 

E assim um pedaço grita sem fim a sua fé pueril
outro, a indignação por real ou imaginada traição irrelevante
outro, perversões cruéis mascaradas rebeldia
outro, a infinita adoção dita responsável de animais ditos resgatados
outro, redundantes maquilhagens ou exibições ostensivas de frustrada vaidade
outro, o amor muito urbano pela natureza fofinha ou panorâmica
outro, a exibição dos vazios galões de um passado feito de acumular galões
outro, a odiosa repugnância ética pelos ignóbeis carnívoros ditos carniceiros
outro, as espiritualidades que exige normativas em escolas e empresas
outro, o ressentimento de dispensar os outros falando obsessivamente sempre e só deles e para eles
outro, infinitas invetivas contra as medidas sanitárias e as vacinas e o cancelamento fantasioso de direitos, todos sempre fundamentais
outro, a indignação ofendida pelo desrespeito à ética das máscaras, cruzadas, duplas, com viseira, colocadas só assim e tal, tal qual
outro, os idílios nunca realizados de amor, casamento e família
outro, a culinária esmerada com que sonha e a que nunca se pôde dedicar
outro, as exigências liberais no país do público e privado só do Estado parasitários 
outro, as reivindicações esclerosadas de um partido à beira da extinção
outro, o elogio de todos à sua profissão que só afinal os seus colegas subscrevem 
outro, as pinturas geniais que nenhuma galeria aceitou
outro, os poemas de uma vida de malogro e frustração
até mesmo os pares apaixonados gritam o medo da solidão
e os babosos dos seus filhos berram a antecipação do abandono
pois é esse o fundo sobre o qual se ergue a postagem e a dita comunicação
cada qual no seu segmento de subsistência a tentar chegar a alguém
e só conseguindo projetar o seu desespero a gemer, a carpir, a gritar
de forma desavergonhada como não seria capaz noutro lugar

O desespero tornado vício impede-os de sequer sonharem libertar-se da caverna
apenas conseguindo buscar no ecrã a abertura que nunca encontrarão
apesar de todos os malogros transatos, todas as evidências da impossibilidade
neste diálogo de surdos que nunca desiste de berrar sem fim nas redes
Como zombies que, perante o pressentimento de um corpo vivo
se lançam desvairadamente a correr e a agarrar e a morder
também ficam hipnoticamente agarrados ao retângulo luminoso
até o desligarem e, como aqueles, se tornarem passivos e apáticos e vazios 
– mas sozinhos, com as paredes e o chão e as mesas sórdidas que não veem
e a sua natureza de fragmento, de insuficiência, de excremento
– reduzir-se a ser em si, sem possibilidade de reflexão ou sequer consciência
uma regressão ao inorgânico com o organismo e os gestos e as palavras
a funcionarem apenas num qualquer modo vegetativo
fornecendo ainda uma vaga aparência de estar vivo

Arrastar-se para aqui e para ali para poder sobreviver
fazer qualquer coisa mecânica automática para o ordenado
cumprir deveres sexuais como mascar pastilha elástica
tudo sem cor, sem perceção, sem comunicação
e julgar existir, por fim, fora de si, na ilusão da rede dita social
sob a forma de grunho, de gritaria, de vozearia, de aleluia
que julga conectar-se por se juntar num nicho dos idênticos
e cada qual ulular para o seu lado como se fora em conjunto
apenas zombies agitados com tão pouca consciência quanto os indiferentes
absolutamente incapazes de ouvir o que alguém diga
e alheados, aliás, de todo o estranho à sua obsessão

O homúnculo sacia um pouco a sua frustração com o análogo
que carregou um gosto na sua publicação
para logo o olvidar e ir para o seu lado urrar
Não houve nenhum diálogo, nenhuma ligação, nenhuma abertura
apenas algo para garantir que o vício continua
O olho cansado alivia-se com um colírio, o bíceps com um afago
o lábio junta-se a outro para ter a ilusão de algo chupar
e o dedo rebola até reentrância onde pode enfim escarvar
tudo ainda mais deprimente quando aliviado
mais hediondo do que simplesmente estar estropiado
mais ignóbil, muito mais, do que só ser fragmento
e pedaço e partícula e obsessão e fixação sempre reiterada
a satisfação do viciado pelo alívio da tensão
que permite ao seu ínfimo inferno a continuação

Mas o anquilosado não conhece apenas a ideia fixa que repete
conhece o sofrimento constante que o tortura
e é tão insuportável, tão intenso, tão aviltante
que parece não poder durar mais, mas dura
Para quê ainda insistir?
O que leva tais sinistrados a ainda persistir?
O ecrã brilhante devolve a questão
e, sem conexão ou memória 
passo para a próxima publicação

Joaquim Lúcio, ressurreição, pp. 294-296

Adverso o verso

  Adverso o verso no reverso do diverso por incapaz de reduzir o díspar ao igual Parece pernicioso pior pérfido perverso à sentença da...