Adverso o verso no reverso do diverso
por incapaz de reduzir o díspar ao igual
Parece pernicioso pior pérfido perverso
à sentença das tábuas da lei do habitual
Desconstrui-lo e/ou torná-lo um falar à toa
convém às colossais potências da conformidade
Se a arquitetura do poema se esboroa
mais fácil condescender com sua insanidade
Houve tempos em que o verso infligia e magoava
que seduzia e deslumbrava que suave acariciava
houve tempos em que sua denúncia incomodava
Hoje o poema foi tornado mais que irrelevante
burguesmente vivenciando fragmentário o instante
deixando a praça livre para o discurso dominante
*
Mistura-se o peido da criada com o salpicão fumado
a tia solteirona com o casaco da infância
a leitura de um autor com o cheiro de um sovaco
o bordado da priminha com a depressão burguesa
tudo sem qualquer nexo senão a vida privilegiada
tão privilegiada quanto a dos deuses que entretinham
instante a instante fragmentariamente a eternidade
desejando alcançar até a mortalidade que não tinham
Porque é que o desconexo se estiver em verso
dá a impressão de subtileza e profundidade?
Porque é que o banal se estiver disperso
já é sinal de requinte e complexidade?
Porque é que disposto em verso o disparate
tem garantida publicação e lugar no escaparate?
*
Burgueses não somos nós todos desde pequenos
o universo não se tornou um paroxismo de privilégio
Tão-pouco os poemas são burgueses ou até menos
por se ter o destino garantido como dissipador régio
O distintivo da dita arte burguesa é ter de arranjar
alguma coisa arbitrária para a obra que se quer fazer
Importa o estilo importa a corrente importa o nome
por se não ter nada ao certo à partida para dizer
Os intocáveis inexistentes na cultura da lisonja burguesa
fazem obras por julgarem importante o que têm a dizer
e é isso que lhes fecha a porta e não a falta de subtileza
Incomoda ao inane refinamento o atrevimento de oferecer
algo que provoque precisamente o sentir e o pensar
em vez da imponderabilidade de não se sabe o quê significar
*
Interessa à ordem de classes dominante
que só se leve a sério o discurso do negócio
do processo técnico jurídico burocrático
do político utilitarista e pragmático
Despejar a possibilidade de discurso alternativo
numa elite decadente e cacofónica
inteiramente virada para o umbigo
e para os elogios mútuos que proferem
é ótimo para reduzir a alternativa à aberração
similar às exibidas no passado pelas feiras
destinada a embasbacar papalvos
incapazes de extrair daí o mínimo sentido
- e claro simultaneamente silenciar
toda a remota hipótese de alguém falar
*
Neste triste ocaso da história humana
que festeja o triunfo da distopia técnica
quanto mais vaidosamente se ufana
o individual em ostentação cénica
mais a voz se cala de dizer e de falar
reduzida à função de comunicar
segundo os padrões gerais do artificial
que extirpam todo o possível pessoal
Ao majestoso espetáculo mediático
contrapõe-se só a risível exibição
do burguês desocupado errático
que sem nada a dizer escreve à toa
e transforma a voz em projetor pneumático
flatus vocis dos sem sentido que profere
*
O baboso burguês balbuciador de baboseiras
nasceu para não ser levado a sério
e evidenciar a vacuidade da vaidade das peneiras
que se oferecem como alternativa ao império
Quanto mais se edita pavoneia bem relacionado
mais confisca a possibilidade do discurso
impedindo que a palavra possa vir a ter significado
e garantindo que o triunfo maquinal siga seu curso
É altura de escutar a orgânica doente
deixar a terra esbanjar de novo o fruto
fazer da plebe renascer o desafio urgente
Está em marcha redução do humano ao bruto
por vitória definitiva do eletrónico cativeiro
Fatídico e final este é o ensejo derradeiro
*
Não há margem para recuperar de uma derrota
não há lugar já para tentar de novo mais adiante
Ou do solo perceção palavra poesia a planta brota
ou só restará o deserto do inorgânico transplante
Ao capturar a possibilidade de discurso para nada
comete-se o maior dos crimes contra a humanidade
pior que campos de extermínio a cada volta da estrada
pior que plantação planetária fúngica de radioatividade
Há que arrancar das garras do soprador de contrafação
o monopólio da alternativa voz e escrita e edição
conceder uma remota hipótese do poeta florescer
A morte do poeta é o triunfo do operativo inumano
a substituição da vida por simulacro sempre a crescer
submersão do mundo no pesadelo global urbano
e nem uma palavra não funcional para dizer
© Joaquim Lúcio, 8/1/24