"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Se o teu cheiro fosse habitação

Se o teu cheiro fosse habitação

lá dormiria eternamente

sem desejo de sair até para a comida

e morreria assim dormente

sem me aperceber que meu corpo definhava

até à consequência de uma morte abençoada.

Se o teu cheiro fosse habitação

lá moraria até a minha dissolução

em moléculas incapazes de lembrança,

amnésica bem-aventurança,

de quem era antes de morar-te

e nesse cheiro encontrar meu baluarte.

Se o teu cheiro fosse habitação

nada mais no mundo poderia eu habitar

porque nesse cheiro se concretizaria

tudo o que procurei em cada mulher encontrar

e só nele se realizaria

o que em cada uma tentava amar.

Se o teu cheiro fosse habitação

antes ele existir e eu não

não mais teria consciência de mim mesmo

não mais haveria eu e relação ao outro

só tendo consciência do que me envolveria

e no qual me dissolveria em fusão

até me aniquilar na sua absorção.

Se o teu cheiro fosse habitação... 


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, vol. II, abertura, 1ª ed., Madrid, Bubok, 2019; 3ª ed., KDP, 2022, p. 99.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Desoladas ruínas

 

Desoladas ruínas de civilização arcaica

erguem torres num hierático mistério,

estéril, pardo, seco, poeirento e desértico

em direção a um sol de inclemente emissão fotovoltaica.

 

E o suor que cola a camisa ao meu corpo

não encontra esperança alguma no horizonte.

Só desespero se dá ao meu olhar absorto

na presença ressequida de uma milenar resistência de alguns anos,

fazendo do subúrbio imagem alucinada dos arcanos

ou petrificação maldita devastada

de uma cidade que a si mesma se corroeu e destruiu,

até derrocar em paredes esboroadas, pó e nada

sem conseguir deter a luta provocada

por um qualquer absurdo e olvidado desafio.

 

Hoje, constrói-se já à partida

aquilo que outrora era catástrofe, saque e destruição, termo, fim,

como se de nós já só fosse possível

engenharia do desastre, estética pós-apocalíptica,

arquitetura de esqueletos, armações, espetros

descolorados e agressivos resultantes

de bombardeamento que ninguém viu.

 

Diz-se que uma multidão habita estas desérticas ruínas,

uma multidão humana

– diz-se e eu não acredito –

se é próprio do homem poeticamente habitar a terra,

que seres são estes que fuçam na cidade

incapazes de articular linguagem

ou conceber até nos atos qualquer beleza?

não foi preciso chegar uma bárbara horda devastadora,

a cidade foi já construída devastada

pronta para receber a grosseria e a manada

que, como nada encontra aqui para saquear,

vai para outro lado até à exaustão labutar

ou, tão brutalmente como se despeja aqui,

vai amontoar-se junto ao mar, para a costa esturricar.

 

E à noite é habitada, sim, mas por ruídos,

por sinistro ranger indeterminável,

ecos crípticos de sombras irreais,

vozes confusas que largam declarações

sem articulação ou contexto

e outras vozes mecânicas eletrónicas,

arrepiantes não fora o hábito,

inquietantes não fora persistência,

pânico tornado aborrecimento por inércia.

 

Viver num apartamento vinte anos

e não saber um único nome de um vizinho.

Vizinhos? Mais vizinho o desconhecido que se cola ao corpo

no percurso de metro ou de comboio,

mais vizinha a barata fugidia

ou a ratazana esgueirando-se à sarjeta,

os chatos que se acumulam na virilha

ou os lepismas nos montes de papel.

 

E, por isso, eu, desenraizado,

estou aqui bem, não podia estar melhor,

percorro a existência sem a incomodidade de outros,

passo por eles mas não há encontros

nesta loucura de massificar a solidão

até cada qual se tornar

uma informe substância de rancor e frustração.

  

Por vezes, estalam nos alvéolos infinitos

discussões, destruições, agressões, lutas;

por vezes, grita aflitivamente numa viela

uma mulher assaltada, agredida, violada;

por vezes, ouvem-se na noite passadas corridas

de criminoso ou vítima ou outrem,

pouco importa, ninguém liga nenhuma,

todos fingem não ouvir,

aumentam o volume para o ruído confundir;

se alguém vai à janela sem grande convicção

ou telefona para entreter a rotina da polícia,

esquece-se rapidamente da razão

e volta à sua habitual rotina e inação;

claro, exceto se for uma travagem ou impacto,

um desastre de um automóvel contra um prédio,

suicídio lançado de um andar mais alto,

atropelamento e fuga, que, de imediato,

tudo assoma às janelas como zombies sedentos

para ver algum sangue vivo enfim jorrar

para lá dos seus hábitos pardacentos.

 

Finjo berrar por alguém para ouvir o eco

e nem um cão se digna a ladrar,

talvez pelo calor inclemente

que não deixa energia senão para aguentar.

 

Embrutecidos, não só pelo trabalho

mas também pela preguiça,

as entidades anónimas não existem,

limitam a entreter-se pela vida,

sem ser necessário teletela

para vigiar atividades.

  

Cada qual está isolado,

ainda mais se vive em família,

esse antro de agressividade e rancor e ressentimento instituídos

onde estar só não protege de ser-se violentado,

cada qual está entregue ao seu absurdo

e, nele, vai embotando cada vez mais o pensamento

por ele nunca servir para algo transmitir,

exceto escárnio, despeito e ofensas,

cada qual vai-se tornando um pequeno monstro,

anulado no seu total isolamento,

mas preparado a qualquer momento,

se houver quem ou o que congregue um dia os monstros,

para tudo arrasar numa vaga de ódio e medo

que vingará seu longo ostracismo ou degredo.

 

E então não serão só estes subúrbios dormitórios

que lembrarão ruínas já passadas,

não ficarão ilesos quaisquer territórios

das classes protegidas, sobranceiras, abonadas

e a fúria só será cumplicemente limitada

pela saciação que for concedida

à turba demente e descontrolada

seviciando os outros de forma desmedida.

 

Mesmo se verdadeiramente habitada,

esta cidade está por essência condenada,

é já hoje o esboroamento de si própria,

já hoje alienígena, estranha

a qualquer coisa que se diga humana,

só podendo ser ressuscitada

sob a forma de uma horda de violência

que encerrará não a sua vida, mas a sua inexistência,

no puro nada da consciência

do arrebatador encarniçamento da demência.

 

Ruínas de ausência de civilização

não nos contam histórias da violência que passou,

anunciam na brutalidade do betão

os frutos de quanta raiva se recalcou

em cada frustrada solidão,

um futuro de descontrolada agressão

que imporá uma ordem de arbitrariedade e opressão.

  

Torres hediondas rodeiam-me como sinistros agouros,

no meio do calor abafado me arrepio,

não invejo a sorte dos vindouros,

o sol abrasador transmuta-se sombrio... 


Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, vol. III, terra, 1ª ed., Madrid, Bubok, 2019; 3ª ed., KDP, 2022, pp. 262-266.


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