"O poeta morreu. Postumamente, se publicam os seus versos. (...) Maníaco sagrado, o poeta está próximo do xamã, do profeta e do louco, mas sem doutrina em que tenha de crer, nem divindades por que se deva deixar possuir, nem delírio a que esteja coercivamente submetido. Proclamador do patente que os outros ocultam ou evitam, ser poeta não é meio, mas princípio e fim."

sexta-feira, 7 de julho de 2023

O ruído

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         O renascido acordou com o barulho de um berbequim a furar uma parede. Seguiu-se um festival de percussão. Lá fora, diversas pessoas tagarelavam o mais alto que podiam. O carro do lixo ajudou à festa. Um vizinho resolveu abafar o ruído com uma pimbalhada qualquer a altos berros. Um funcionário autárquico começou a aparar eletricamente a relva próxima. Uma vizinha pôs‑se a falar da janela para a rua, para uma amiga, aos gritos, ambas conseguindo suplantar o aparador. Não conseguiu aguentar mais e saiu, tentando afastar-se o suficiente de tanto ruído. Não conseguiu. Numa esplanada, um tipo queria partilhar o seu gosto de heavy metal; num parque, um grupo dançava ao ritmo de sucessos latinos; num café, era a vez da televisão com o volume altíssimo; num posto de saúde, todos tinham de suportar o programa da manhã da estação de rádio mais histriónica; numa cervejaria, estavam a assistir um jogo de futebol, berrando a cada pormenor de uma jogada, já para nem falar dos golos; numa biblioteca, jovens reuniam-se à volta de computadores, outros em trabalho de grupo, de forma tão agitada que tornava impossível qualquer leitura; num restaurante, bastavam as conversas dos comensais e dos pedidos e saídas de pratos dos empregados para criar um barreira única e impenetrável de som; e, por toda a parte, toda a gente berrava, não por estar zangada, mas para mostrar aos outros estar alegre, para exteriorizar boa disposição; dos carros saía todo o tipo de enlatados musicais; os arranques e travagens dos autocarros acompanhavam todos os contributos; a passagem de aviões marcava o contraponto; inúmeros ruídos de música, telenovelas, discussões domésticas, obras e mudanças de todos os tipos a sair por portas e janelas completavam o concerto. E não valia a pena sair do subúrbio. Sabia muito bem que tudo seria bem pior no centro da cidade.

         Alguns dos jovens, aliás igualmente barulhentos, foram encontrá‑lo num recanto que o renascido considerou um pouco menos ruidoso. A visível tensão fez os jovens interrogá-lo.

 

A sociabilidade traduz-se em primeiro e último lugar

no imperativo categórico do barulho

Tem de se fazer muito a propósito de tudo e de nada

com muita gesticulação e diversas inflexões

A gente acima de tudo nunca quer ser confrontada

com o vazio do silêncio e o peso das suas solidões

 

Por isso, a constante vigilância contra a sua possibilidade

só deprimido, só doente, só suicidário é possível o silêncio

é sempre melhor ir importunar o taciturno

interromper tal comportamento abstruso e destrutivo

pudera ser proibido até o próprio sossego noturno

nunca se sabe que consequência provirá da falta de ruído

 

Há que criar uma barreira constante à consciência

uma muralha de som sistematicamente produzida

pelo próprio e pelos outros, por todos e suas máquinas

uma barragem de artilharia contra qualquer questão

um fingimento constante de festejo sobre a agonia

que crie um circo estereofónico travestido de alegria

 

Há que garantir que não acorda o sentimento do abismo

que a mente se não debruça sobre a sua origem

que o sujeito não se vira para o que foi separado

e, espreitando a cisão, seja tomado de vertigem

que não se dilacera na insuportabilidade do olhar

e na impossibilidade de ver o que busca captar

 

Há que proibir que o pensamento pergunte para quê

que interrogue o próprio sentido de estar lançado

que intente alcançar a fonte, indagar porquê

que se fragmente no caos sem nexo do intencionado

que permita a ansiedade, a angústia, a tortura

que inicie o percurso que desemboca na loucura  

 

Mas há também que ocultar os ritmos da natureza

os sons do roçar das folhas, o estridular de insetos

o marulhar de miríades de gotas, o ressoar do trovão

chuva a cair na terra, chamamentos, trinados, trajetos

bichos a ratar madeira, vento a assobiar em claustros

o planeta inteiro a vibrar sob o silêncio dos astros

 

por se temer acordar e ser só um elo da vida

menos relevante que barata, erva, bactéria

anomalia ridícula, efémera, que será esquecida

como buraco na trilha, bloqueio de uma artéria

perturbação instantânea do fluxo do devir

avaria passageira, piada que nem faz rir

 

A mesma barragem é armadura e é arma

armadura contra o terror da sua própria condição

agressão global contra o meio de que depende

e que visa usar para lhe fornecer distrações

para constantemente evitar olhar para o vácuo

recriando desejo com sempre novas obsessões

 

Para não pensar em nada, em si, no todo

para não se correr risco de suspensão da distração

é preciso exteriorizar-se sob a forma de ruído 

fingir constantemente estar a ser em relação

ou, em caso de emergência, substituir pelo ecrã

a agitação pública que recomeçará pela manhã

 

A vociferação nas redes e mensagens

é a forma derradeira e perfeita de evitar silêncio

ocupando a mente com os sons imaginados

análogos aos emitidos para o exterior

fornecendo uma barreira inexpugnável

para a reflexão do hiato insuperável

 

Para impedir confronto com vazio e pleno

como um saco virado para fora, do avesso

atira-se esse vácuo para o exterior

e polui-se com ele o ambiente

garantindo que ele enfim pareça cheio

mesmo que seja de sujidade e de receio

 

Há que tornar o planeta inteiro um ruído

intenso e colossal sem princípio ou fim

de forma a impedir o desafio de um sentido

e a denúncia do desespero do chinfrim

instaurador do império de caos global

apresentado como nova ordem mundial

 

Babilónia tornou-se virtual e planetária

e materializa-se no fragor da agressão

com que mobiliza todos os recursos

para assegurar a alienada perpetuação

da algazarra espalhafatosa que desvia

olhar e escuta da intrínseca aflição e agonia

 

Permitam-me ficar um pouco em silêncio

já chegam as fontes de barulho

­– melhor seria existir entre destroços

e não ser mais que uma parte do entulho

 

         Com tal pedido, após tão grande ataque ao ruído, os próprios jovens afastaram-se em silêncio, mesmo não podendo calar o bulício envolvente. O renascido ficou a vê-los a afastarem-se…

 

E ainda assim não procuro um ermo

para continuar o meu caminho

ainda assim à relação não ponho termo

não deixo os outros, não estou sozinho…


Joaquim Lúcio, ressurreição, KDP, 2022, pp. 245-247.

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