No subúrbio, ninguém tem nome. Se
parece tê-lo, ao menos para alguns, em breve será esquecido, em breve nunca
terá existido. O anonimato é a sua essência. Os seus habitantes têm rostos, mas
ninguém os quer reconhecer; têm mãos, mas ninguém lhes reconhece o valor; têm
sangue, mas só serve as manchetes quando criminal ou policialmente derramado.
Deles depende toda a aparente vida da cidade, sem eles, nem as paredes dos
privilégios se segurariam para ver nascer um outro dia – porém, são desprezados
pelos abastados e poderosos até o ponto de nem terem consciência do desprezo. A
vida é, para estes, só o que ocorre na metrópole, as relações estabelecidas entre
gente reconhecida como pessoas pelo nome.
No caos dos privilégios, o nome
parece essencial, cada qual já tem, ao nascer, identidade, carreira política, empresarial
ou universitária, lugar por trás de um avental, editora, publicidade mediática,
lugar de comentário televisivo, lisonja garantida nos eventos, o caminho aberto
por ser filho de algo. Só no centro da urbe ou nos subúrbios do deleite se reconhece
a existência e em lado algum a morte habita menos cada gesto, expressão, manha,
pensamento ou dito recorrente, que no antro do luxo perdulário. Os que têm nome
são o inimigo, o inimigo mortal nascido da anulação da massa imensa do subúrbio
e estão em todos os partidos, em todos os sindicatos, em todas as igrejas, em
todos os clubes, em todas as associações, em todas as “espiritualidades”, em
todas as academias, em todas as agremiações, ao menos se tiverem algum porte,
para garantir que só os que têm nome terão lugar em algum palanque. Este livro
é dedicado aos que não têm nome e até os privilegiados serão nele despidos de
nome. A possibilidade de pessoa não precisa de nome, precisa de ser a sua
diferença, precisa de viver a sua vida, libertar-se do oceano asfixiante da
manada, ser o rosto que se nega à massa do subúrbio. A pessoa é a sua diferença
ou não é nada, não precisa de ornamentos e o nome tão distintivo dos
privilegiados não passa da decoração com que se disfarça o vazio essencial.
Este livro não foi feito para
agradar a ninguém. Se alguém que o lesse, o aceitasse de ponta a ponta, ficaria
muito preocupado. Um dos principais objetivos é a denúncia de ilusões e o ser
humano precisa de ilusões quase tanto quanto de alimento. Pode com facilidade e
até prazer acusar e denunciar as dos outros, mas agarra-se às suas como se
fosse questão da sua própria sobrevivência. Mas cada uma dessas ilusões é
apenas uma forma de atormentar a mente, um vício, uma alucinação que, se não
for um pesadelo imediato, sê-lo-á nas suas consequências. Tal como um
toxicodependente, cada qual agarra-se a essas ilusões que lhe destroem cada vez
mais a existência e que em nada lhe permitem lidar com o real, como se fossem
mais relevantes que a própria vida. Daí o imperativo de as denunciar. Se o
livro peca por algo em relação ao projetado, é por ter sido encurtado nessa denúncia,
dado o porte que estava a alcançar.
Chegou a hora de desbravar novos
caminhos. Boa parte desses caminhos passará pelo derrube, já iniciado neste
livro, das minhas próprias derradeiras ilusões. Deixo a outros a fabricação de
mistificações que as gentes deglutem famélicas de alienação. Para mim, reservo
o olhar cru que já referia no meu primeiro livro ausência.
E, porém, também o olhar cru pode ser um sonho, pode ser um pesadelo, pode ser
alienação. A ressurreição pode ser morte, pode ser maldição, pode ser apenas um
desvio para uma mais completa aniquilação. Poderá um sonho, um pesadelo, um
delírio dizer algo que faça ver para além dos véus? Não será o destino, este
destino, apenas nova mistificação? Não poderá uma mistificação ser uma manha do
desvelamento? E renascer apenas o início de um novo velamento?
Este livro não foi feito para
agradar a ninguém, nem sequer a mim próprio... Caminhará sozinho por seus
desertos e será esquecido, como cada habitante do subúrbio. Na verdade, cada
sujeito de si próprio tão convencido também só sobreviverá nos anais
privilegiados para reter a ilusão de quanto foi importante o seu vazio... Os
passos andam sempre sem destino, o caminho só a si mesmo se caminha, a procura
só a si própria se encontra...
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