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Mais uma sessão solene para dizer palavras cheias de significado para os patetinhas dentro dos ecrãs. Colaboram na intriga, o que se disse ou não se disse de forma velada ou críptica, e nada, rigorosamente nada, terá qualquer sentido para quem procure sondar o ventre do amanhã. Repetem-se canções e poemas icónicos esvaziados do significado original, formalidades rituais destinadas a secar a memória daquela manhã que trouxe a voz para dizer a fome antiga. Importa fingir que se está a dizer o poema inicial, importa calá-lo pela sua exaustão e regressar, como se tivesse sido alguma vez interrompido, ao discurso que se diz político ou solene ou pragmático. E que entreguem a poesia aos burgueses diletantes que impedirão qualquer ressurreição do significado da manhã. Eles extinguirão o lugar da fala e deixá-lo-ão, como até aqui, à mercê do homem unidimensional, o homem do cálculo, da operação, da propaganda, do poder, o último homem, o homem tanto mais absoluto quanto mais mesquinho, natural e invisível. Enquanto transmitiam a sessão, o renascido via e ouvia noutro ecrã um desses poetas de vacuidades consagrado e era notório como se sentia incomodado. A dupla e complementar profanação, a da poesia e a da revolução, ambas poema, ambas transgressão, ambas conspurcadas pela apropriação por caricatura, fraude e impostura, era demasiado repugnante e, ao questionarem-no, respondeu:
É urgente defecar na metáfora infinita
para permitir que o dizer possa respirar
A palavra encontra-se sequestrada na sanita
despejada por sopradores do vozear
É urgente libertar o discurso dos grilhões
resgatá-lo da boca putrefacta do pedante
arrancá-lo à ausência de sentidos e razões
purgá-lo da lama gongórica, do insignificante
É urgente tornar de novo a palavra proclamada
a palavra do profeta, do protesto, da denúncia
antídoto da indiscernível velada e abafada
É urgente percuti-la vibrante e percebida
é urgente que versos se possam entender
é urgente que a voz algo enfim diga
*
Na manhã dos cravos, o poeta foi ouvido
porque sua voz ressoava de destino
em cada palavra, dizia e era percebido
cada som, indicava a rota e o caminho
Mesmo surreais combinadores de sons à toa
sentiram necessidade enfim de limpidez
e fizeram sua voz significar Lisboa
por fim redimida da mordaça e da mudez
Devia ter sido advento de sentido eterno
mas calou-se logo após ser proferido
À primavera sucedeu o frio inverno
Só o tecnocrata seria em breve ouvido
o discurso burocrata, do mercado, da usura
Começara nova e mais insidiosa ditadura
*
Toda a ditadura é uma ditadura da linguagem
O objetivo é sempre fazer pensar o que se quiser
Para romper tal armadura, há que ter muita coragem
Ficará abandonado quem a tal opressão se opuser
Enfileiram-se reumáticos os poetas do regime
nunca perecem entre os folhos do serôdio
renascem no privilégio de cada elite séria e letrada
tão esforçada para não incomodar e dizer nada
Apesar de tão titulares censores a impedirem
é urgente fazer medrar a palavra impertinente
erva daninha irrompendo entre as pedras da calçada
Grafitem-se as traseiras dos serviçais e do regente
Só o escândalo do poema cru e indecente
germinará cravos numa manhã inesperada
© Joaquim Lúcio, 25/4/22, ressurreição, pp. 240-241